Um disco nos passos dos pioneiros

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Para cortar com velhos hábitos e entrarem de cabeça no segundo álbum, as Warpaint passaram uma temporada em Joshua Tree. Voltaram de lá com um disco precioso, tão belo, silencioso, ermo e estranho quanto a paisagem que as rodeou durante esse período

Nem uma canção com a palavra Califórnia, diziam. Por alturas da edição de The Fool, as Warpaint eram novamente quatro. Às vozes e guitarras de Emily Kokal e Theresa Wayman e ao baixo de Jenny Lee Lindberg acabava de juntar-se a bateria de Stella Mozgawa – substituindo a actriz Shannyn Sossamon (Road to Nowhere). Mas apesar de terem estabelecido o quartel-general em Los Angeles, para onde chamaram Mozgawa de um dia para o outro, a ideia de que pudessem representar a cidade sob alguma forma era-lhes avessa. Para Kokal, possivelmente com harmonias vocais radiosas dos Beach Boys a soar-lhe na cabeça e a palpitação funk-rock a sabotar-lhe qualquer sentimento de pertença, a única ligação que aceitava com resistência ao site Don’t Panic era a de que as Warpaint pudessem soar à verdade de LA por detrás da maquilhagem de perfeição ou de atalhos para uma vida de sonho. A terem de representar alguma coisa, essa coisa seria o desaire (afectivo, profissional) e a escuridão que começa a imediatamente a seguir ao último fio de luz projectado pelos holofotes.

Stella Mozgawa, nascida na Austrália, fala ao Ípsilon de uma LA em que “tudo é estranho” e em que não se sente viva ao andar nas ruas. Recorrendo a uma estatística por si ficcionada, a baterista aponta para 45% de uma população que se instala na cidade à espera de que algo de milagroso lhe aconteça e acaba por ficar uma vida inteira agarrada à ideia de que a espera será compensada pelo milagre. “Sempre comparei a experiência de viver em LA ao filme Dead Man – ele [William Blake, interpretado por Johnny Depp] arranja um emprego, aceita partir, viaja para outra cidade e pensa que vai começar uma vida nova, mas ao chegar percebe que o emprego não está disponível”, retrata a baterista.

O filme de Jim Jarmusch esgota aí a relação com a vida artística das Warpaint. A menos que pensemos na música descarnada e de uma beleza arredia composta por Neil Young como banda sonora. A menos que pensemos na viagem como franqueamento da entrada em território desconhecido. A menos que pensemos na adopção do preto-e-branco para eliminar o excesso de informação visual. Warpaint, o segundo álbum do quarteto feminino, está, na verdade, saturado destas ideias e teve como berço um retiro em Joshua Tree, em Março de 2012. Durante um mês, as quatro músicas enfiaram-se numa casa pequena o suficiente para tropeçarem umas nas outras constantemente e as ideias não terem maneira de lhes fugir. A aridez da vizinhança do deserto mais um céu que parece tão vasto e inabitado quanto a paisagem terrena viajam livremente por estes arraçados de canções, num disco de atracção pop pouco ortodoxa. Warpaint não desiste de ser belo, mas fá-lo a partir de uma beleza arenosa, intangível, que não se deixa agarrar e avança com uma ligeireza airosa por cada novo trecho.

Nem os coiotes

A região de Joshua Tree deve o seu nome, diz a lenda, ao baptismo dado pelos mórmons às abundantes árvores cujos galhos pareciam ser um sinal de Joshua indicando o caminho da Terra Prometida aos pioneiros. Foi também esse o caminho dos cowboys no final do século XIX e uma das paragens da Corrida ao Ouro, cujos vestígios se resumem hoje a minas abandonadas. Entre 1863 e 1936, os norte-americanos podiam requerer pequenas parcelas de terreno do deserto do Mojave para recomeçarem a sua vida. Mas a presença humana na região continua a ser escassa. Foi esse isolamento que as Warpaint quiseram garantir, assegurando-se de que ninguém interrompia as sessões criativas com um “ei, pessoal, vou ali tomar um café com o meu amigo Bobby” e quando finalmente voltava, “depois de duas horas e meia de conversa da treta”, ficciona Stella, alguém havia de ter saído para levantar a roupa na lavandaria.

“Estar em algum lado, por mais horrível que seja [e até nem era esse o caso], que nos afasta do nosso estilo de vida, dá-nos espaço para desacelerarmos e pensarmos”. Ali estavam sempre juntas, partilhando noites em branco até verem nascer o sol, uma banheira de hidromassagem e uma despensa abastecida, para que nem o saloon ao fundo da estrada pudesse deixar de ser desinteressante. E, em Joshua Tree, uma guitarra eléctrica ligada a um amplificador não chateia verdadeiramente ninguém. Nem sequer os coiotes.

As guitarras, no entanto, não teriam grande ordem de soltura. “Sabíamos que não podíamos enfiar uma série de guitarras enleadas umas nas outras, o baixo e a bateria lá atrás, e depois toda a gente a cantar por cima. Era um excesso”, admite Stella. Warpaint não leva a cabo uma terraplanagem por cima desta dinâmica natural no grupo, mas recusa a familiaridade. “Ao andarmos em digressão durante dois anos e meio percebemos que as canções estavam muito cheias e que tínhamos de ganhar espaço para todas nós”. A profusão de ideias, no entanto, continua presente. Só que a preocupação das quatro era agora que, em cada dado momento, fosse evidente quem conduz a canção pelos freios. O que ficou pelo caminho, arrisca a baterista, terá sido “uma energia nervosa e adolescente que havia em algumas canções do primeiro álbum”.

Em vez dessa energia nervosa, Warpaint revela um negrume obsessivo em CC ou um palpável rapinanço de padrões rítmicos e linhas de baixo sacados aos cofres do r&b. “Mariah Carey!”, chegaram a citar em entrevista. Mas não é nada disso. Warpaint deverá ser o álbum mais anti-diva a ser lançado no espectro pop de 2014. Percebe-se o sentido da afirmação ao ouvir a sequência Hi, Biggy – desacelerada a partir de uma versão criada em parceria com Jono Ma, dos falsos madchesters Jagwar Ma –, Teese e Disco//very, mas o tom é sempre flutuante, é música não para dar trabalho aos quadris, antes para pôr a cabeça a rodar até fazer coincidir a vertigem com aquela que propele a música. Não há statement, portanto, o nome de Carey não vem à baila para capitalizar um qualquer gosto irónico ou tomado por excêntrico.

Há qualquer coisa de OK Computer em Warpaint. Não em termos puramente estéticos, mas como marco de libertação e experimentação. Não há anseio algum por cumprir cadernos de encargos alheios. Até mesmo o single Love is to Die é uma coisa oblíqua, em que a entrada do refrão parece enxertar repentinamente uma música noutra e desequilibra a progressão harmónica. E por todo o disco a sedução das Warpaint faz-se com uma fragilidade quebradiça, de quem nos agarra pelos colarinhos e não nos deixa ir embora, mas sem nos domar pela força. É isso: o rock ficou por desemalar.

A noção de risco está lá. Caso contrário, a presença de Flood (PJ Harvey, Nick Cave, Sigur Rós) como co-produtor dificilmente se justificava. Flood entrou com o processo bastante avançado e Stella garante que o seu papel era o de funcionar como grilo falante sempre que o sofrimento que se apodera delas na tomada das decisões pudesse implicar alguma perda de objectividade. Só que, na verdade, soa mais provável quando a baterista nos diz que Flood as interessou porque “não tem um som característico, adapta-se àquilo de que uma banda necessita mas faz com que toda a gente soe maravilhosamente”. As Warpaint precisaram apenas de alguém que lhes dissesse que aquilo que estavam a fazer não era um capricho sem pés nem cabeça. E não era igualmente vulgar. Mas não, é um disco sublime com a dose certa de um charme tímido, de quem não sabe se está no sítio certo. E é essa ligeira insegurança que faz com que isto resulte.
 

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Warpaint
Warpaint
Rough Trade; distri. Popstock
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