Com Cass McCombs descobre-se o tanto que cabe numa hora de concerto

Num concerto curto mas admirável, o autor de Dreams come true girl visitou canções de toda a sua discografia.

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Depois do concerto no Maria Matos, em Lisboa, Cass McCombs apresenta-se sexta-feira no Teatro Aveirense e sábado na Casa das Artes de Famalicão Luís Martins

Cass McCombs Lisboa, Teatro Maria Matos 16 de Janeiro, 22h15 Lotação esgotada 4*

Muito despretensiosa, a banda surge em palco quando ainda se ouve nas colunas de som do teatro o reggae que ocupou o tempo antes do concerto. “Como é?”, lança quase sem olhar o público, de cabeça baixa, olhos na guitarra e nos pedais, o homem que esgotou o Maria Matos numa noite de quinta-feira (e que actua nesta sexta-feira no Teatro Aveirense e no sábado na Casa das Artes de Famalicão).

O reggae desapareceu de vista, o homem apresentou-se. O concerto arranca. Surpreendente. Não pela escolha de County line, que para não ceder à hipérbole classificaremos como uma das mais memoráveis canções que a Humanidade produziu nas últimas décadas — lamento nocturno de um amante perdido, soul em essência sem sinais óbvios de soul. Antes porque a banda ataca tal pérola com demasiado desembaraço, quase trôpega, e, sendo impossível resistir àquele anti-refrão caído em falsete (“You never even tried to love me”) e aos coros que cortam, com humor displicente, o peso das palavras que o antecedem, fica a sensação inicial de que este será um concerto sem rede. Cass McCombs vira-se para o baterista e, à Dylan, dá o sinal de que a canção terminará ali. A partir daquele momento está tudo em aberto, pensamos: isto pode correr muito bem, isto pode correr muito mal (alerta de spoiler: correu muito bem).

Nesta sua terceira passagem por Portugal, Cass McCombs trazia consigo Big Wheel and Others, o seu último álbum de estúdio, um disco duplo em que, de certa forma, se concentram os diversos estímulos criativos que conduziram aos seis discos anteriores. O concerto foi igualmente um compêndio: com a excepção de A, a estreia, o alinhamento teve paragens em toda a sua discografia. O momento em que tivemos por certo que tudo correria pelo melhor chegou, ainda assim, com uma das canções de Big Wheel And Others.

Depois da titubeante County line e quando uma apressada Love thine enemy (qual Lou Reed liderando uma banda de garagem da década de 1990) começava a despedir-se, a banda prossegue sem pausas e desagua em Name written in water, canção de melodia doce, retemperadora, e de versos que, como é habitual em Cass McCombs, caminham em sentido contrário: “Fear and solitude, faithful as any friend / Cannot even linger about after I descend / My name is written in water and I’m gone again.” Aqui, já nada há de trôpego na interpretação. O baterista competente de olhos postos no seu vocalista (há que saber ler os sinais que ele lhe dá), o baixista e ocasionalmente pianista de sorriso discreto e o guitarrista e homem da guitarra pedal steel tão talentoso, quanto perturbadoramente inexpressivo se mantém o seu rosto, mostram-se intérpretes perfeitos da música de McCombs.

Este, o músico que não perde tempo a comunicar com o público (quem tem canção destas não precisa, não tendo temperamento para tal, e ele não tem, de tais exercícios de empatia forçada), guia a banda pela América de estrada em aberto e dos pântanos blues de Big wheel (o primeiro grande momento da noite) ou pelo country-rock agraciado por brisa suave de Angel blood — momento em que percebemos que o californiano McCombs tem algo nele de outro célebre habitante da Califórnia,  Arhtur Lee, dos Love, ele que nunca cantou country rock, mas que se atarefava em descobrir as sombras que cresciam sob a placidez californiana: os anjos nas canções de McCombs estão cá em baixo, muito terrenos, não nas alvuras celestes, muito puros.

Daí em frente, Cass McCombs foi baladeiro comovente nessa Dreams come true girl que arrancou aplausos de reconhecimento entre a plateia — e, porque o baladeiro é também um provocador, trocou a presença fantasmagórica da actriz Karen Black, falecida em 2013 e que ouvimos na gravação original, por uma inesperada tangente ao jazz, cortesia do guitarrista. Daí para a frente, já assistíramos, sem o saber, a mais de metade concerto.

Vimos como se pode pegar no legado de Lou Reed e transformar aquele fraseado mais falado que cantado em matéria terna (“There can be only one”), recuámos a PREfection, o segundo álbum, em City of brotherly love e Sacred heart, e vimos Cass McCombs despedir-se, treze canções depois.

Regressaria para avisar que, se não tivéramos oportunidade de dançar (as cadeiras, realmente, não ajudam a tal), tínhamos agora oportunidade para o fazer. Lionkiller, a primeira de Dropping the writ, portento de psicadelismo e surrealismo — começa com um simples “I was born in na hospital / very big and white” e acabará em conto moral, em auto-mitologia moderna (“stick a needle in my eye / I’m middle class to the day I die”).

Lionkiller: guitarra ondulando num riff circular, qual loop, o baixo seguindo-a a curta distância e McCombs, num concerto onde nos conduziu a tantos sítios em tão pouco tempo, a guiar-nos até uma última revelação. No final, o guitarrista de rosto granítico há-de fazer a guitarra soar ao órgão Hammond que existe em disco mas não no palco. Um último golpe de ilusão.

Tão rapidamente quando surgiu em palco, Cass McCombs lança um agradecimento ao público e desaparece para os bastidores. Os aplausos pedem o segundo regresso que não acontece. Pouco mais de uma hora de concerto. Dito assim, parece muito pouco. Terminado o concerto, porém, torna-se simplesmente redundante medir aquela hora de uma forma tão fria, tão objectiva. A música de Cass McCombs contém multitudes.
 

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