A farsa

Estamos de luto pela humilhação e falta de ética de quem nos governa. “Há a liberdade de falar e há a liberdade de viver, mas esta só existe, quando se dá às pessoas a sua irreversível dignidade social” (Miguel Torga)

Vivemos um momento grave da nossa história pagando os custos da irresponsabilidade de quem nos (des) governa há trinta anos (partidocracia). A grave crise financeira acentuou as fragilidades da UE e as debilidades estruturais do País com o modelo de desenvolvimento esgotado.

A crise não se resolve com arrogância promovendo ahostilidade intergeracional, mas combatendo as causas da corrupção - promiscuidade entre sector público e privado que prejudicam o Estado e os cidadãos. Ademocracia com défice de ética desprestigia o sistema político em risco de implosão.

A maioria da divida pública deve-se à ganância do sistema financeiro que capturou o Estado.O crédito foi encorajado pela banca com má gestão,que estamos a pagar. E os banqueiros insolentes deviam ter pudor.

O Tribunal Constitucional (TC) representao primado pela lei sendo inaceitáveis pressões. É o Governo que deve conformar a acção política com a Constituição que não pode ser vista como risco.

O risco grave vem do bloqueio do sistema político, que se traduz na incapacidade de afirmação do interesse público e nacional. Mas o essencial nunca se pode transformar em negação do diálogo.

O Governo, em estado de negação, não assume os erros e necessita de um “inimigo” - o TC como “força de bloqueio” – para justificar o fracasso da política ignorando a carta de demissão do ex ministro das finanças.

A crispação política, a vergonha do passa-culpas irão penalizar os próprios agentes políticos. O primeiro-ministro (PM) pretendia o consenso para remendar a revolução, que correu mal e deixar o ónus do fracasso no maior partido da oposição ou no TC.

A crise conduz o País a um Estado de emergência permanente que põe em causa o normal funcionamento de um Estado de direito e do regime democrático com evidências de crise de segurança.

A excepcionalidade da necessidade financeira, sem o Governo densificar o conceito, em tempo, dificulta a aceitação pelo TC desse juízo, eutiliza o duplo critério de observância dos contratos: com os cidadãos (confisco fiscal e social); com grupos económicos e privados (intocáveis).

O Programa de ajustamento foi utilizado como o desejado programa “além da troika” e instrumento de orientação neoliberal para “revolucionar” o País com aimplementação do dobro da austeridadecriando a convicção de não haver alternativa sem problemas de “calibragem”!

A crise foi agravada pelo Governo com falta de liderança e inteligência, que não sabe fazer a gestão de expectativas, cujos resultados desastrosos evidenciam e os portugueses sentem. Foram excedidas todas as previsões no défice, rácio da divida, com investimento e desemprego dramático (taxa real cerca de 20%). E levou a mudança de paradigma obrigando à transformação das empresas e das famílias. Falta o Estado.

A alternativa ao saque dos rendimentos está disponível desde 2010 – Estudo do Instituto de Sá Carneiro -, e sugeria poupanças de 6,5 mil M€ na despesa do Estado que foi desprezada face ao peso do clientelismo.

O esforço brutal exigido (23 mil M€) foi desperdiçado e é desigual! O PM viola promessas eleitorais e tem força para cortar nos salários e pensões. Mas não consegue obter poupanças da reestruturação do Estado, não sendo legitimo associar, com sofisma os “cortes cegos” (4,2 mil M€) à reforma do Estado anunciada num Guião, inconveniente, tentando conciliar o inconciliável.

O Estado social é essencial à coesão social pela cobertura da taxa de pobreza (18%). Os seus “inimigos” são o despesismo, políticas capciosas e o trágico desemprego reflectido no aumento das despesas. O seu desmantelamento facilita o desejado acesso dos privados.

O Governo (representantes da troika) omite a realidade sobre a austeridade. Mas é abstruso que as entidades imponham políticas de que discordam, prejudicando Portugal! A discussão do Programa politicamente insustentável, não é com técnicos, mas ao níveldo Conselho Europeu sem submissão humilhante.

O impacto recessivo no OE de 2014 - cortes nos rendimentos e funções sociais 83% (3900 M€) enquanto a banca e o sector energético suportam 150 M€ - irá degradar o “milagre económico” anunciado.

O PM sabe que o “sucesso” do ajustamento é mistificação, porque os objectivos não se atingiram. Com a excepção da correcção do desequilíbrio externo não haverá consolidação orçamental. O PM também sabe que o País não tem acesso aos mercados sem a confiança gerada pela intervenção do BCE.

A trajectória do rácio da dívida (127% do PIB), será insustentável seguindo o raciocínio do Presidente da República em 2010, que não era “masoquista”. Só a renegociação libertará recursos que dinamizem o crescimento económico e permitam o seu pagamento.

Mantêm-se os motivos que conduzem ao empobrecimento declarado pelo PM em “perfeito juízo” comprometendo o crescimento económico, incompatível com a demissão “irrevogável”.

Os efeitos colaterais da crise não deviam ser desvalorizados, pois vão provocar modificações da sociedade pela dimensão da desconstrução social com consequência num futuro sem esperança. Impõe-se uma reforma do sistema político.

Os cenários desta farsa mudam consoante as conveniências inconvenientes e substituem-se conforme a primazia da conjuntura num sistema político bloqueado e numa democracia sem cidadãos.

Se o preço a pagar pelas políticas da UE é excessivo – haja convicção na defesa dos interesses nacionais -, o País não deve manter-se no euro a qualquer preço. Vive-se a incongruência de uma economia não competitiva, mas com o euro que se valoriza. Por isso, sem resolver os efeitos assimétricos da moeda única e a segmentação dos mercados será inevitável a desagregação.  

É inquietante o défice de elites. Mas, ainda mais, o défice de “alma” da sociedade que não é exigente no escrutínio da classe politica.Os órgãos de soberania e agentes políticos devem tomar consciência, que a pobreza e o desemprego provocam rupturas e são ameaças à coesão social e ao regime democrático.

Nesse sentido, urge consensualizar um Acordo de responsabilidade, alargado à concertação social – incluindo uma visão mobilizadora para o futuro com justiça social -, que assegure o equilíbrio entre o rigor orçamental e o ciclo de crescimento económico com a coordenação dos fundos, em especial, os da UE que não se podem desperdiçar, devidamente enquadrado por uma Estratégia Nacional (médio prazo).

Os governantes deviam registar: as políticas que levam ao empobrecimento nunca resultaram. Democracia e pobreza são incompatíveis! Isto é, mudam de políticas ou o regime será mudado. O fim dos governos começa quando deixam de ouvir a crítica.

Capitão-de-Fragata SEF (Res)
 
 

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