O clube que Eusébio construiu

Há dois domingos acordei e o melhor futebolista que este país já viu, um ícone do século XX português (mais Muhammad Ali do que Cristiano Ronaldo), tinha morrido — o Eusébio foi, confissão horripilante, a única pessoa, além de mim próprio, com quem fantasiei morbidamente, em vida, com o respectivo funeral

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Comecei e recomecei este texto várias vezes. “Vou mesmo escrever sobre isto?” É que Portugal adora futebol, mas parece que só o aceita discutir na frequência cerebral do Dias Ferreira ou do guarda Abel. Daí que esta crónica seja mais reflexão a frio do que reacção à queima.


Desde que comecei a gostar de futebol, há mais ou menos vinte épocas, só quatro equipas foram campeãs e uma delas, o FC Porto, dominou claramente a prova. Mas em 1993/94, talvez o primeiro campeonato nacional de que tenho memória, o Benfica fez-me o favor de ser logo campeão e ainda por cima teve a distinta lata de ir a Alvalade atropelar o Sporting num 3-6 histórico (sete portugueses no onze do Benfica e eu a jantar na sala, de tabuleiro, pela primeira vez na vida — obrigado, mãe).


??Isto para dizer que fiquei mal habituado no pior momento histórico possível: achei que o título de campeão de futebol era uma daquelas inevitabilidades cósmicas, um evento festivo com que ocasionalmente seria brindado, como um eclipse parcial do Sol (“o último do milénio!”). Estava, hoje sei, enganadíssimo, mas não o poderia prever. No ano seguinte o Benfica mandou embora Toni, sentou Artur Jorge no banco e contratou Caniggia, mas acabou em terceiro e as coisas nunca mais foram as mesmas. Entretanto, as épocas foram passando e, no final da década, o Sporting voltou a ser campeão, 18 anos depois — era o cúmulo, a humilhação final e, pior ainda, a perda de um poderoso argumento de recreio (não foi fácil crescer benfiquista no Porto).

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??No início dos anos 2000 ser campeão nacional de futebol era, para mim, o equivalente a acreditar na consubstanciação — talvez o Benfica não voltasse a ser campeão durante o meu tempo de vida — talvez ver o Boavista campeão fosse o melhor que se podia arranjar. Desportivamente, o martírio era possível: o Manchester City ficou entre 1968 e 2012 sem ganhar um título inglês, por exemplo, e, fora do futebol, os Red Sox não venceram nenhuma World Series de 1918 a 2004. Felizmente, em ano de centenário, o pior Trapatonni e o melhor Mantorras de sempre levaram, na última jornada, o campeonato para a Luz (dez anos esquecidos com um penalty do Simão Sabrosa no Bessa, o futebol é mesmo o desporto rei) e pude finalmente cumprir as minhas promessas de judeu — perdão — benfiquista errante: trazer todos os jornais desportivos do dia seguinte para casa e comprar o manto sagrado com as quinas de campeão. As coisas voltaram, à medida que as temporadas se foram sucedendo, mais ou menos ao que eram até que, em 2009/10, uma primeira época incrível (de vitórias e erros gramaticais) de Jesus nos devolveu o primeiro lugar.


??Serve este intróito na primeira pessoa para pôr as coisas em perspectiva. Enquanto jogou pelo Benfica, em década e meia de fantasia, Eusébio foi onze vezes campeão (o Sporting tem 18 títulos desde a fundação, em 1907). Além disso, onze é exactamente o número de campeonatos nacionais do Benfica desde o 25 de Abril e, caso não saibam, o número de jogadores com que cada equipa começa uma partida. Por isso, apesar de nunca o ter visto jogar, cresci a adorar o Eusébio — mesmo a sua versão de blazer da Master Card.


??Parecia-me impossível que o Benfica que foi eliminado da Taça pelo Gondomar (em casa, até custa a escrever) fosse o mesmo Benfica do Pelé moçambicano que ganhava tudo. Que o Benfica dos comunicados estapafúrdios fosse o mesmo Benfica do avançado que consolava os guarda-redes adversários. E, por que não dizê-lo, que o Benfica dos equipamentos cor-de-rosa fosse o mesmo Benfica que só sabia jogar de encarnado e branco ou de branco e encarnado. Desta vez o luto é a sério. Podemos sempre regressar no ano seguinte e voltar a tentar depois de entregar, de bandeja, mais um campeonato ao principal clube rival — mas o Eusébio já não volta. E é isso que custa mais. Tinha, pelo menos, a esperança vaga de o vir a conhecer pessoalmente.


??A vida continua, mas o Benfica perdeu o Eusébio e eu não me lembro, porque nunca existiu, de haver um sem a presença do outro. Pouco me interessa a discussão sobre o Panteão (que precisa mais do Eusébio do que o contrário) ou as maratonas televisivas em que os canais se divertem a filmar-se uns aos outros de diferentes ângulos em modo “o primeiro a dar outra notícia qualquer, perde”. E o presidente que chame o que entender ao centro de estágios do Seixal (o único “affair” que interessa discutir é a preservação da estátua). Mas o Benfica perder o Eusébio, o seu poema heróico, a sua magnum opus, já é uma crueldade sem nome.


??E que se dane a “comoção nacional” e a “histeria colectiva” do Pacheco Pereira, que se lixem as piadas com o Morgan Freeman/Mandela/Pelé no Facebook. Ao Benfica foi-lhe logo morrer o Eusébio! E, como pluribus unum, estamos todos de luto — não por culpa de mais um empate comprometedor em casa, não porque o nosso treinador só sabe ganhar campeonatos a cada 100 milhões de euros de investimento no plantel, não por mais uma final europeia perdida para o Bella Gutman. Pior: de luto e sem catarse tribal durante uma semana, um período de nojo cuja primeira fase terminou ontem, com a vitória no clássico. Se ainda sobrar alguma mística, ela que também entre em campo até Junho para que, se as coisas ainda puderem ser como antes (estou a pensar numa espécie de “Groundhog Day” da primeira época de Jesus na Luz), o Benfica tenha começado a ganhar este campeonato na última jornada da primeira volta. Mais do que um aquário de acrílico à volta da estátua, essa seria a verdadeira homenagem.


??Se os Yankees são "the house that Ruth built", o Benfica é o que é muito graças ao homem de quem agora nos despedimos. A boa notícia é que daqui para a frente só pode melhorar. Até lá, o bom homem que descanse em paz.

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