Sobre a CES e a reforma dos sistemas de pensões

O recente acórdão do Tribunal Constitucional onde é analisada a constitucionalidade de algumas das normas do denominado diploma sobre a convergência dos sistemas públicos de pensões (CGA e Segurança Social) considerou que, apesar da relevância dos interesses públicos invocados no documento (sustentabilidade financeira dos sistemas, equidade intra e intergeracional e convergência dos sistemas), a forma como a sua prossecução era proposta não seria, no entender do tribunal, a mais adequada injustificando, por isso, o sacrifício dos direitos adquiridos pelos actuais pensionistas da CGA.

Os sistemas públicos de pensões são, em Portugal como em boa parte dos países da OCDE, financiados em repartição contemporânea, com base num princípio de solidariedade intergeracional fundados em contratos implícitos entre gerações sucessivas. O cumprimento deste contrato, ou seja, o pagamento das «promessas» de benefício definido (pensões) atribuídas pelos sistemas depende das condições demográficas, económicas e financeiras observadas em cada momento do tempo.

Acontece que essas condições não estão, em boa medida, sob o controlo do Estado, pelo que uma concepção e gestão inadequada dos sistemas podem por em risco o efectivo cumprimento do princípio constitucional do direito à pensão e as condições de vida e sobrevivência de milhões de pensionistas. Os sistemas de pensões em Portugal são maioritariamente contributivos, i.e., financiados com base nas contribuições dos trabalhadores e entidades empregadoras, embora na Constituição e na prática estejam previstas outras fontes de receita, entre as quais a afectação de impostos sobre todas as fontes de rendimento.

A Contribuição Extraordinária de Solidariedade (CES) constitui, a este nível, uma nova modalidade de financiamento da segurança social que impende sobre os próprios beneficiários das prestações sociais, afastando-se um pouco modo de funcionamento usual do sistema, que assenta no princípio da contributividade, que tem em si mesmo implícita a noção de que existe uma relação directa entre a obrigação legal de contribuir e o direito, diferido no tempo no caso das pensões de velhice, às prestações sociais.

Esta deriva é ainda mais evidente no caso das pensões atribuídas pelas modalidades privadas de protecção social, na maior parte dos casos completamente independentes do sistema público de segurança social, e financiadas com patrimónios próprios (fundos de pensões) constituídos e geridos em regime de capitalização financeira. Deve salientar-se, no entanto, que a CES não é caso único no contexto nacional (veja-se a contribuição actualmente paga pelos respectivos beneficiários sobre os subsídios de doença e desemprego) e internacional, onde o caso mais conhecido talvez seja o de França é aplicada há já alguns anos a denominada contribuição social generalizada (CSG), que incide sobre todos os tipos de rendimento, seja eles do trabalho, patrimoniais ou de capitais.

Neste sentido, a CES só pode ser justificável como medida conjuntural, transitória, num contexto extraordinário de exigências de financiamento do Estado e de necessidade de cumprimento das obrigações externas perante os credores internacionais, com a finalidade específica de assegurar uma participação equilibrada dos pensionistas no financiamento do sistema de segurança social.

Em qualquer caso, deve alertar-se que insistir na tese da irreversibilidade de direitos adquiridos pelos actuais pensionistas num cenário de insustentabilidade demográfica e financeiras dos sistemas de segurança social implicará um sacrifício total/parcial dos direitos em formação já legitimamente constituídos pelos trabalhadores no activo, cujo período contributivo se iniciou mas ainda não se completou. Exigir a estes últimos uma obrigação crescente para com o sistema em troca de uma promessa de benefício instável e incerta não é compatível com um contrato intergeracional justo.

Mesmo se possível, financiar os défices de autofinanciamento (de contribuições) dos sistemas com a canalização de dotações crescentes do Orçamento do Estado ou mediante a emissão de dívida pública significa que a sociedade assume, conscientemente, que será necessário diminuir o peso do Estado noutras funções sociais (educação, saúde) ou a transfeririam para as gerações futuras da dívida implícita já hoje significativa. Esta última opção deve ser descartada porquanto viola um princípio de equidade intergeracional nos sistemas.

Na minha opinião, a garantia apropriada dos direitos adquiridos pelos actuais pensionistas e em formação pelos actuais trabalhadores e a construção de um contrato intergeracionalmente justo implicará uma reforma global dos sistemas públicos de pensões, com a criação de um sistema unificado, geral, com separação entre as componentes de solidariedade e de seguro social, assente no princípio da contribuição definida, em contas individuais, incorporando mecanismos automáticos de repartição justa dos sacrifícios entre as gerações activas e as gerações reformadas.

Universidade Évora & UNL-ISEGI
 
 
 
 

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