O mundo de Bruno Pernadas é muito melhor do que o nosso

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Autor, arranjador e guitarrista em formações como os Julie & The Carjackers, When We Left Paris e Real Combo Lisbonense, Bruno Pernadas vem de uma formação clássica mas também passou pela Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal Nuno Ferreira Santos

Bruno Pernadas edita em Março o seu primeiro álbum a solo. Com este disco, e o dos You Can’t Win, Charlie Brown, está encontrada a editora da rentrée: chama-se Pataca Discos e é a nova aventura de João Paulo Feliciano

Por onde começar? Talvez pelo bilhete de identidade: Bruno Jorge de Oliveiras Pernadas, 29 anos, natural de Lisboa, músico com percurso iniciado aos 13 anos na aprendizagem da guitarra clássica e que completou também a Escola de Jazz do Hot Clube de Portugal e a Escola Superior de Música de Lisboa, ao mesmo tempo que estudava Análise e Técnicas de Composição com o compositor e maestro Vasco Mendonça. E nos últimos anos: autor, arranjador e guitarrista em formações como os Julie & The Carjackers, When We Left Paris e Real Combo Lisbonense, compondo e tocando ainda em vários projectos de artes performativas. 

Um bilhete de identidade versátil, portanto. E no entanto quase nada disto nos prepara para a entrada em How Can We Be Joyful In A World Full Of Knowledge. Trata-se do seu primeiro álbum a solo a editar em Março, um puzzle onde os mais diversos elementos pertencentes a um sem-número de tipologias (folk, jazz, pop, afro-beat, rock psicadélico, exotismos vários, electrónicas, ambientalismos ou hip-hop) se embrenham num jogo de alusões lúdicas infindáveis, reunidas numa sonoridade solar, espacial e harmónica. Por norma existe um elemento sonoro que desencadeia a actividade rítmica e depois sucedem-se os acontecimentos inesperados a cada curva sonora. 

Oiça-se o tema de abertura, Ahhhhh: começa com uma voz a expressar um “ahhhh” de exclamação, entrando depois uma guitarra folk cristalina e uma voz envolvente que poderia pertencer aos Beach Boys, tudo isto estruturado à volta de um ritmo que evoca levemente o hip-hop, e que acaba por ir desembocar numa inesperada e inebriante toada afro-beat. 

É assim o seu disco, universo paralelo de coisas maravilhosas a acontecerem à nossa frente, com capacidade para nos espantar, numa miríade infindável de influências (dos clássicos Beach Boys e Van Dyke Parks aos mais novatos Panda Bear e Dirty Projectors), mas sem que por um único momento deixemos de habitar o seu cosmos muito particular. E o que é mais incrível é que todos os seus gestos contêm a pureza de quem se entrega à descoberta sem esquemas, ao mesmo tempo que revela grande aptidão técnica para se expressar, organizando todos os elementos com precisão. “Não parto para nenhuma música com uma ideia concreta”, diz-nos ele, tentando explicitar a sua forma de operar. “É qualquer coisa que paira na minha mente — pode ser uma melodia ou um som, e parto daí. Deixo a música respirar. O que a música pede é o que lhe tento dar. Deixo-me ir atrás dela”, ri-se. 

Composto e produzido pelo próprio, conta com a participação de vários cúmplices. Entre eles encontramos nomes como João Correia (Julie & The Carjackers e Tape Junk), Afonso Cabral (You Can’t Win, Charlie Brown), Francisca Cortesão (Minta & The Brook Trout, They’re Heading West) ou Margarida Campelo (Julie & The Carjackers e Real Combo Lisbonense), todos eles fazendo parte de uma geração de músicos eclécticos que pulula por entre diversas formações e não se fixa numa só família musical. 

Quanto a Bruno, aos 13 anos já sabia que iria ser músico. “Nunca tive dúvidas”, assegura, contando que ao longo dos anos tocou nos mais diversos locais e eventos, de hotéis a feiras, integrando múltiplas formações, assegurando dessa forma a sua estabilidade financeira. 

A partir do momento em que entrou para a escola do Hot Clube, o jazz atravessou-se definitivamente na sua vida. “Mesmo antes de saber fazer acordes de guitarra, já gravava músicas com um gravador rudimentar, uma guitarra e uma bateria”, recorda, aludindo ao facto de nessa altura, por influência de professores, lhe interessar a música de nomes como Camel, Yes, Beatles, Roy Orbison ou Creedence Clearwater Revival. Só depois surgiram a clássica e o jazz. E depois, outra vez, a pop e o rock. 

Hoje diz-se numa ilha própria. Não se sente isolado, mas considera que Portugal é ainda um país conservador, onde as diferentes linhagens musicais vivem em mundos separados. “Os músicos de Nova Iorque tanto tocam jazz como freejazz, metal ou rock, criando canções ou instrumentais, e as pessoas respeitam-se. Aqui nem toda a gente tem esse espírito”, declara. 

Para além da relevante formação musical, diz que ter crescido em zonas como Benfica e Amadora lhe deu uma visão singular da realidade musical. “Talvez porque aí é mais fácil nascer uma cultura mais minoritária”, afirma. “Quando andava no liceu, por exemplo, havia um grupo que adorava tudo o que fosse da Bélgica, na linhagem dos dEUS, ou seja grupos como os Zita Swoon, Kiss My Jazz ou Evil Superstars. Não significa que no centro de Lisboa não houvesse quem ouvisse esses grupos, mas ali o sentimento de partilha era diferente.”

Nos anos 1990, durante a adolescência, vamos vê-lo a assistir a programas da MTV como 120 Minutes e Alternative Nation, gravando em VHS os videoclipes de que mais gostava. Já na década de 2000, depois do jazz, volta a deixar-se seduzir por grupos de pop exploratória como os Stereolab ou os Broadcast. Em 2009, é um dos fundadores dos Julie & The Carjackers na companhia de João Correia, para dar vida às canções de ambos que não cabiam nos colectivos anteriores. No caso de Bruno, os When We Left Paris, projecto de jazz, com álbum já editado e outro pronto a lançar. 

“Nos Julie fazemos tudo a meias, eu e João, portanto este trabalho a solo é naturalmente diferente”, afirma. “No grupo por norma respeita-se o formato canção e as músicas nunca são demasiado longas, embora não tenhamos essa premissa previamente definida.” Aconteceu, apenas, no último disco do grupo, o álbum Parasol, de 2011. “Neste projecto a solo, o processo de criação é muito diferente, até por razões temporais. O tema mais antigo, LA, é de 2012 e o mais recente, Ping pong, é de 2013.”

Clarões luminosos

Enquanto no colectivo de jazz When We Left Paris opta por desenvolver ambientes mais soturnos, a solo as canções de Bruno Pernadas respiram jovialidade, povoadas por clarões luminosos, contrastando com o ambiente social e político do mundo. “Foi um acaso”, diz ele, rindo-se. “O disco funciona como um puzzle desmontável para mim, ao qual ia adicionado peças que fizessem sentido no conjunto, e realmente acabou por ficar um disco com qualquer coisa de alegre, embora tenha também um lado introspectivo.”

O que existe também na maior parte das canções é sensibilidade melódica e riqueza de soluções, a que não deverá ser estranha a sua filiação jazzística. “O lado do jazz ajudou-me muito nessa liberdade melódica e harmónica, mas isso sempre esteve lá”, esclarece Bruno. “Sempre gostei muito de formações pop com afinidades melódicas com o jazz, como os Stereolab. O mesmo se passa com compositores italianos de bandas-sonoras para filmes, como o Bruno Nicolai ou o Ennio Morricone, ou noutra perspectiva qualquer coisa que encontro também em Martin Denny.” 

O seu álbum está recheado de pormenores, subtilezas sonoras que se encadeiam de forma quase sempre imprevista, daí que não seja difícil prognosticar que será um disco difícil de ser executado em palco. Mesmo para alguém que conhece muitos músicos das escolas por onde andou. “Fiz um mapa de possibilidades para apresentar o disco ao vivo e cheguei à conclusão de que necessito de muitos músicos em palco. Não será certamente fácil reunir esse naipe de executantes, mas impossível não é.” 

Para além da apresentação do disco em concerto, depois do seu lançamento, lá para Março, haverá ainda outras aventuras para desenvolver. Os Julie & The Carjackers vão começar a pré-produzir novo álbum, os When We Left Paris têm novo registo e haverá certamente outros projectos em grupo ou solitariamente. A música é a sua vida desde sempre. Mas em 2014 pode bem acontecer que seja descoberto por muito boa gente, como se fosse a primeira vez.

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