A condição contemporânea por Philippe Parreno e Pierre Huyghe

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As metáforas do cinema e do jardim zoológico são chaves fundamentais para apreender as obras em parte paralelas de Philippe Pareno e Pierre Huyghe

O Centro Pompidou e o Palais de Tokyo reinterpretam as obras de dois dos mais pertinentes artistas visuais europeus, transformando o nosso presente semi-apocalíptico em imagens e espectros — ou seja, em cinema

Ao aproximarmo-nos da entrada do Palais de Tokyo, o centro de arte contemporânea de Paris, notamos algo de diferente. O néon que costuma anunciar a programação do espaço desapareceu, dando lugar a uma estrutura translúcida de luz branca. Entramos. As bilheteiras também se transformaram: o balcão habitual é agora uma parede de luz, que transforma os funcionários em silhuetas. À nossa volta, os candeeiros acendem-se e apagam-se a um ritmo estranho, tal como a sinalética do museu-exposição, acompanhados pelo eco intermitente de um piano ao longe. Um misto de sonho e pesadelo: entre o cenário futurista em construção e a ruína após o desastre. Apocalíptico e redentor. Chegámos a um lugar qualquer que já não pertence ao Palais de Tokyo: o universo coreografado de Philippe Parreno, um Anywhere, Anywhere Out of the World, como a frase que dá título à retrospectiva. 

O artista francês é conhecido por interpretar o formato exposição como um trabalho total, constituído pelas diferentes peças, que assim se tornam momentos no interior da experiência imersiva. Entre os exemplos anteriores conta-se, por exemplo, a exposição na Serpentine Gallery de Londres, em 2011, onde os visitantes eram guiados pelas salas da galeria através dos sons de cada vídeo, activados numa progressão individual que descrevia um percurso pelo espaço. A retrospectiva no Palais de Tokyo, que pode ser vista até ao próximo dia 12, leva este tipo de abordagem à sua expressão máxima, ocupando, pela primeira vez na sua história, todo o espaço do edifício. 

Anywhere, Anywhere Out of the World cria um espaço cinemático marcado por uma exploração profunda da imagem e dos seus sistemas de representação, utilizando a figura do fantasma, um produto típico do mecanismo cinematográfico, como instrumento principal. A presença espectral é sentida logo à entrada, através da ilusão-silhueta dos trabalhadores das bilheteiras, para reaparecer permanentemente em toda a exposição. Na instalação Marilyn (2012), o espectador vê o interior de um quarto do hotel Waldorf Astoria nos anos 50. O percurso pelo espaço-tempo é guiado pela visão subjectiva da diva de Hollywood e acompanhado pela sua voz e pela sua letra manuscrita, recriados através de computadores. É estranho sentir que o movimento pelo interior do quarto ecoa a nossa deslocação pelo Palais de Tokyo. 

A instalação Anywhere Out of the World (2010) expande esta análise da figura fantasmática através de Annlee: em 1999, Parreno e outro seminal artista visual francês, Pierre Huyghe, compram a personagem manga a um estúdio japonês e iniciam o projecto collectivo No Ghost Just a Shell, onde especulam um paralelismo entre o ser humano e o protagonista de ficção. Na projeção do Palais de Tokyo, Annlee reflecte sobre a sua condição artificial, questionando-se sobre a vida. O trabalho de Parreno é acompanhado por uma performance de Tino Seghal, que se inicia com o aparecimento de uma menina na sala. É uma nova encarnação de Annlee, que nos interroga directamente, olhando-nos nos olhos, movimentando-se à nossa frente e incluindo-nos no seu monólogo. Anywhere Out of the World reúne todos os temas, todos os mecanismos e todos os jogos de espelhos da obra de Parreno: a experimentação sobre a autoria artística, os cruzamentos entre espaços dentro e fora do ecrã, ficção e vida real, o coreografar da experiência-visita, a investigação da imagem como representação e como entidade autónoma, a contaminação entre a arte e áreas como a ciência ou a indústria do entretenimento. Não podia ser outro o título da exposição.

Ecossistemas

Se a retrospectiva de Parreno formula uma análise da condição contemporânea através de presenças fantasmáticas assombradas pela ideia de morte, a exposição de Pierre Huyghe no Centro Pompidou, também em Paris (até dia 6), pode ser vista como o outro lado da questão, o lado da vida. 

Em 2011, Huyghe inaugura na galeria Esther Schipper, em Berlim, a exposição Umwelt (Ambiente), em que são apresentados diversos organismos: formigas, aranhas, um vírus activo de gripe e o próprio público (incorporado através do anúncio do nome de cada visitante por um porteiro). No mesmo ano, e integrado nos projectos especiais da feira Frieze, o artista apresenta Zoodram (2011-), um aquário onde, entre outros crustáceos, caranguejos-eremita utilizam réplicas da Sleeping Muse de Brancusi como casa-protecção. De acordo com Vincent Honoré, curador francês director da David Roberts Art Foundation e responsável pela exposição individual de Huyghe na Tate Modern em 2006, o trabalho do artista atravessou duas fases. Do seu ponto de vista, o primeiro período é marcado por uma abordagem estrutural aos mecanismos do imaginário (e em particular do cinema); o segundo, iniciado em 2010, caracteriza-se por um interesse pela ficção entendida como um ecossistema de experiências. A exposição do centro Pompidou apresenta uma leitura retrospectiva da sua obra tendo como foco este segundo momento: mesmo os trabalhos anteriores são relidos a esta luz. A exposição torna-se um organismo vivo, em movimento e transformação.

A própria estrutura do museu é utilizada para sublinhar a dimensão mutante e orgânica da mostra. As paredes da exposição anterior, dedicada a Mike Kelley, foram reutilizadas e obras como Timekeeper (1999-) ou Shore (2013) resultam de uma agressão física ao museu, raspando camadas de tinta directamente das paredes. Aileen Burns & Johan Lundh, co-directores do Institute of Modern Art de Brisbane, na Austrália, associam estes gestos, reveladores da história do espaço no interior da exposição, à prática de Gordon Matta-Clark, que o artista já tinha citado em Light Conical Intersect (1996), uma projecção do filme Conical Intersect (1975), de Matta-Clark, no sitio exacto do edifício intervencionado nos anos 1970. O museu é assim entendido como um ecossistema ao qual, entre outros organismos, também pertencem os visitantes. Talvez a maior marca da exposição entendida como organismo vivo — ou, pelo menos, a mais visível — seja a presença de Human (2011-2013), um cão de pêlo branco com uma pata cor-de-rosa que se movimenta livremente no interior do espaço. Human fez a sua grande aparição na Documenta13 do ano passado, no interior da instalação Untitled (2012), à qual a exposição no Pompidou também vai buscar a figura feminina reclinada cuja cabeça é constituída por uma colmeia de abelhas.

A utilização de organismos vivos, animais ou plantas, resulta do seu interesse em questionar os limites da instituição e, principalmente, a voz autoral do artista. Na continuidade deste pensamento, Huyghe, de forma semelhante a Parreno, inclui obras ou referências a outros artistas como Marcel Broodthaers, Modigliani, John Cage ou Le Corbusier. Os seus testes às fronteiras do mundo da arte inscrevem-se na linhagem de Marcel Duchamp, questionando o que é ou pode ser considerado um objecto artístico e em que consiste a prática de um artista. A dimensão curatorial da sua prática também se pode relacionar com gestos de Duchamp como a inclusão de sacos de carvão no tecto da Exposição Internacional do Surrealismo de 1938. À semelhança de Parreno, Huyghe entende o formato expositivo como uma peça no contínuo do seu corpo de trabalho, criando um ambiente fluido, onde as fronteiras entre cada obra são porosas. Juntas, todas compõem um único organismo vivo. Os aquários deZoodram, por exemplo, lembram a caixa de fumo, luz e cor de L’Expédition Scintilante (Light Box) (2012), ou a exploração de uma floresta no interior da ópera de Sidney de Forest of Lines (2008).

Condensações

Huyghe e Parreno pertencem a um grupo de artistas que emerge na década de 1990 associado à chamada estética relacional teorizada por Nicolas Bourriaud — uma prática que toma como ponto de partida o conjunto de relações humanas e o seu contexto social. Embora esta dimensão, e principalmente a vertente participativa de Huyghe, tenha perdido peso nos seus trabalhos mais recentes e, consequentemente, nestas duas apresentações, ainda se encontram diversos traços desse interesse anterior, por exemplo no entendimento da exposição como uma experiência híbrida de fição e realidade. Visualmente, as duas exposições aparecem como objectos totalmente opostos. Parreno propõe um percurso centralizado que coreografa o percurso do visitante pelo interior do museu, oferecendo-lhe um campo de visão altamente restringido: apenas se pode experimentar um trabalho de cada vez. Huyghe cria um labirinto com diferentes possibilidades de movimento, com diversos mundos coexistindo em paralelo; cabe ao visitante fazer a sua própria edição do conjunto. 

O cinema, influência maior de Huyghe no inicio da sua carreira que parece ter perdido espaço na fase actual, é um instrumento interessante para interpretar as duas exposições. Se no caso de Parreno o seu impacto é claro, tanto pela forma como pelo conteúdo da exposição, em Huyghe a sua presença é mais difusa, embora não menos importante. Mais do que explorar a organicidade em si mesma, Huyghe transforma os organimos que manipula em imagens, representações que não controla, testando a presença da fição na vida e as possibilidades de vida na fição, um procedimento, neste sentido, semelhante a Parreno. A sua aproximação ao modelo do jardim zoológico também se pode relacionar com uma influência cinemática: ambos emergem na mesma época e têm como objecto a produção de simulações da realidade. Continuando o parelelismo inicial entre a centralidade da ideia de morte em Parreno e da ideia de vida em Huyghe, o cinema regressa como o mecanismo que concilia ambas: um movimento semelhante à vida, mas com intervalos regulares de imobilidade e morte.

A centralidade da imagem, da representação, no trabalho de ambos os artistas tem como objectivo principal intensificar a experiência contemporânea, colocando-a face-a-face com ela mesma, comparando-a com um referente seu. O cinema (e o seu antecedente, a fotografia) constitui-se como um instrumento ideal para este tipo de pesquisas, criando simulacros ficcionais adequados a uma reflexão comparativa. Deste ponto de vista, as exposições de Parreno e Huyghe podem ser vistas como espaços intensificadores da condição contemporânea através de mecanismos cinematográficos. No catalogo da exposição de Pierre Huyghe, Tristan Garcia pergunta-se: “O que sou eu? Eu sou o espírito contemporâneo. Eu sou intenso e por vezes condenso-me.” 

Num cenário contemporâneo quase apocalíptico em que objectos tão estranhos como drones assassinos, circuitos de vigilância on-line orwelianos, desastres ambientais do tipo Fukushima e crises financeiras tentaculares fazem parte da vida quotidiana, estas duas retrospectivas tornam-se condensações poderosas e necessárias da capacidade da arte como instrumento de reflexão política, fora deste mundo mas perto dele como nunca.

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