Daqui ninguém sai ileso

O novo filme do artista plástico Steve McQueen transcende a aparência de “máquina de Óscares” para confirmar a dimensão humana do seu cinema confrontacional

Vamos dar de barato a dimensão “politicamente correcta” de um filme sobre a escravatura no Sul dos EUA no pré-Guerra Civil Americana contado do ponto de vista de um negro livre que foi raptado e vendido como escravo, imortalizado num livro de memórias publicado no século XIX. Vamos igualmente dar de barato que essa dimensão politicamente correcta, somada ao lado de filme sério, de prestígio, cheio de actores de nome a fazerem uma perninha para o currículo, justifica por si só a dianteira que 12 Anos Escravo já leva na corrida aos próximos Óscares e a quase-unanimidade crítica que recebeu nos EUA. Nada disso explica ou justifica a devastação emocional com que se sai do filme - como se Steve McQueen tivesse decidido usar a seu favor essa fachada de “filme americano sério” para esconder uma obra tão brutalmente perturbante e radical como os anteriores Fome e Vergonha (que, recorde-se, eram também, a seu modo, filmes “sérios” e “políticos” sobre assuntos habitualmente “sérios” como a Irlanda do Norte ou o sexo como adição).

12 Anos Escravo prossegue sem pejo a dimensão brutalista, confrontacional, do cinema do artista plástico britânico; pode ser o seu filme mais “convencional” em termos de estrutura, em termos de narrativa, mas está longe de confortar ou consolar o espectador. Não existe complacência nenhuma aqui, nem com o espectador (que dá por si apanhado numa montanha russa progressivamente mais assustadora) nem com a história (que não é, nunca, erguida a história exemplar, nem perde o lado de experiência singular e irrepetível). Apenas uma espécie de imersão a sangue frio, sem aviso prévio, num pesadelo que recusa qualquer onirismo mais ou menos escapista para ser mostrado de modo ostensivamente directo. McQueen não embeleza nem subtrai, nem precisa de mostrar a violência física mais do que um par de vezes; chegam-lhe a violência psicológica, a atmosfera opressiva e claustrofóbica que reconhecemos das obras anteriores, envolvendo o espectador quase sem dar por isso e “libertando-o” apenas no final da projecção sem que tenhamos sequer percebido que estávamos prisioneiros.

Americano pode este filme ser em termos de financiamento, produzido por Brad Pitt e aterrando mesmo no meio dos debates sobre a cor da pele que a eleição de Barack Obama trouxe, mas é também, reconhecivelmente, filme do seu autor (que mantém dos anteriores o director de fotografia, Sean Bobbitt, e o montador, Joe Walker): um filme que pega em abstractos para os transformar em carne e osso, que não se esconde atrás da aparente seriedade dos seus temas mas procura transformá-los numa experiência emocional que faça sentido para quem vê. (E nunca será demais sublinhar como McQueen se tem revelado extraordinário director de actores, não apenas com o seu actor-fétiche Michael Fassbender mas, aqui, arrancando ao contudo sempre excelente Chiwetel Ejiofor uma daquelas interpretações para a história.)

Um pouco como Solomon Northup, o negro livre que ganha a vida como músico e que se deixou enganar por dois negociantes de falinhas mansas, o espectador entra em 12 Anos Escravo confiante na sua segurança de ser mero observador distante de uma história verídica encenada para sua instrução e sai abalado, combalido, transtornado. Steve McQueen não faz, nunca fez, filmes para nos confortar, nem nunca os fez conformado. 12 Anos Escravo é uma obra-prima de um dos cineastas mais vitais a filmar hoje em dia.

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