Salwa Castelo-Branco, mulher de música, senhora Etnomusicologia

Chegou a Portugal em 1982 e em 1995, fundou o Instituto de Etnomusicologia, dando impulso definitivo à nossa investigação musical. Este mês, a Sociedade Suíça de Musicologia premiou o seu trabalho. Foi também eleita Presidente do Conselho Internacional de Música Tradicional, ligado à UNESCO. Que diz ela? “Se eu desaparecer amanhã, o Instituto não morre e a etnomusicologia continuará e florescerá. Era esse o meu desejo há 30 anos”.

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Salwa Castelo-Branco: “A etnomusicologia estuda a realidade sem juízos de valor” Daniel Rocha

Salwa Castelo-Branco nasceu no Cairo em 1950. Estudou no Conservatório da capital egípcia, mas foi em Nova Iorque, na Columbia University, que concluiu o seu mestrado e doutoramento em Etnomusicologia. No início da década de 1980, o seu caminho cruzou-se definitivamente com Portugal. Casou com um português e em 1982 atravessou o Atlântico em direcção a Lisboa, integrando o Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa (UNL). Não sabíamos então que, nas décadas seguintes, se tornaria uma figura determinante das ciências musicais em Portugal.

“A etnomusicologia é uma disciplina científica que estuda a música nas suas múltiplas dimensões, nomeadamente a social, a cultural, a política, a cognitiva e a estética.” A definição surge na entrada dedicada à Etnomusicologia da Enciclopédia da Música Em Portugal no Século XX (2010), obra decisiva pela sistematização daquilo que foi a música, em todas as suas vertentes (os intérpretes, os instrumentos, os letristas, os compositores, os géneros), no século passado.

Na capa dos seus quatro volumes, lemos: “Direcção de Salwa Castelo-Branco”. É a obra de que mais se orgulha, corolário de um trabalho que ganhou impulso definitivo em 1995 com a criação na UNL do Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos Em Música e Dança (INET-MD), que fundou, a que preside, onde se formaram as primeiras gerações de etnomusicólogos portugueses e que agrega actualmente mais de cem investigadores.

Entre a obra de Salwa Castelo-Branco contam-se trabalhos como Portugal e o Mundo: Encontro de Culturas na Música (1997), Vozes do Povo: A Folclorização em Portugal (2003; com Jorge de Freitas Branco) ou Traditional Arts in Southern Arabia: Music and Society in Sohar, Sultanate of Oman (2009; com Dieter Christensen). A par de investigações sobre representações de identidade nacional através da música ou dos estudos sobre música tradicional portuguesa ou árabe, participou activamente na candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade.

A 5 de Dezembro, o seu percurso foi distinguido em Berna com o Prémio Glaeran da Sociedade Suíça de Musicologia. Meses antes, fora eleita Presidente do Conselho Internacional de Música Tradicional (CIMT), de que era vice-presidente. Estreitamente ligada à UNESCO, esta é a maior associação mundial de etnomusicologia e um dos órgãos consultivos nas candidaturas a Património Imaterial da Humanidade - e sim, Salwa Castelo-Branco acha que o cante alentejano, em cuja candidatura também colabora, tem todas as condições para se juntar ao Fado enquanto representante português na lista. E continua a aguardar que o Estado se consciencialize da importância da criação de um Arquivo Sonoro Nacional.

A etnomusicologia implanta-se em Portugal com atraso considerável. De onde partimos e onde estamos agora? Podemos considerar as recolhas de Michel Giacometti ou o trabalho de Ernesto Veiga de Oliveira como antecessores do que se viria a desenvolver no INET – MD?
O que havia era um trabalho de colecta, meritório e importante, mas não havia o ensino da etnomusicologia, nem a pesquisa verdadeiramente etnomusicológica, que assenta na música enquanto fenómeno social. Giacometti fez um trabalho meritório, mas que se centrou no som musical. Ele queria registar, e fez isso muito bem de norte a sul do país, mas não tinha formação nem interesse no estudo das problemáticas. Por exemplo: desde o período em que começou o trabalho dele, em 1959, que se prolongaria até final dos anos 1980, Portugal passou por várias mudanças. Nos anos 1960, a época da grande mudança, houve a emigração para o estrangeiro e a imigração com o início da guerra colonial. Isso, quer num contexto rural quer urbano, afectou a música de forma extremamente aguda. Por outro lado, havia o movimento folclórico apoiado pelo Estado Novo. Eu teria gostado de saber qual foi a vivência das pessoas nas aldeias em que Giacometti gravou. Vou evocar um contexto que conheço muito bem, Cuba do Alentejo. Que diferença havia entre o cante nas tabernas e o cante num grupo? Olhando para hoje, vejamos a globalização. O que é que o estudo da música nos pode ensinar sobre ela? O que é que a música nos pode ensinar sobre as identidades dos grupos migrantes na área metropolitana de Lisboa, ou nos migrantes portugueses que vão para fora?

No caso de Giacometti e outros autores de recolhas, como Alan Lomax, havia o desejo de preservar manifestações musicais vistas como emanação pura de uma cultura popular. Enquanto etnomusicóloga, não tem a mesma preocupação?
[A etnomusicologia] Estuda a realidade sem juízos de valor. Quando nos anos 1950 a rádio espalha o fado ou as canções de revista pelas áreas rurais de Portugal, não é de evitar registá-lo e ver como as populações locais o absorvem. As canções do fado foram retrabalhadas nos cantares ao desafio do Minho ou na música que é tocada em gaita-de-foles em Trás-os-Montes. Depois, os anos 1960 foram anos difíceis de perda de população que afectou a vida rural, tal como afectou o país todo. Ernesto Veiga da Oliveira observou então que vários instrumentos já tinham poucos praticantes. Mas agora houve uma total reviravolta. Se olharmos para a gaita-de-foles ela está de boa saúde. Muita gente a toca, muita mais que nos últimos 30 anos. Porque é que os jovens urbanos de Lisboa pegam na gaita-de-foles? Uns dizem que gostam da sonoridade, outros dizem que têm raízes no norte, outros gostam de toda a experiência ligada à redescoberta de uma existência mais simples, mais ligada à natureza. Há muito a retirar desses fenómenos. São eles que a etnomusicologia actual tenta perceber.

Que desafios se lhe apresentam enquanto recém-eleita da maior instituição mundial de etnomusicologia?
O CIMT tem uma missão importante: criar um fórum académico entre estudiosos e não só etnomusicólogos. Pessoas que se interessam pela música, sobretudo tradicional, mas também popular e urbana. Os meus objectivos são por um lado levar em frente a organização, no sentido de alargar e aprofundar o trabalho, sobretudo em áreas com pouca representação, como a África subsariana, o Médio Oriente, a América Latina, que com excepção do Brasil, está pouco representada, ou as Caraíbas. Interessa, no fundo, criar pontes e saber dialogar e aprender. Há tradições locais muito importantes que é preciso valorizar e integrar e é preciso também dar voz a outros olhares sobre a música que estão um pouco ausentes do debate internacional, que tende a centrar-se numa visão anglo-americana. Eu própria tenho essa formação mas aprendi ao longo dos anos, e principalmente através do CIMT, que há outros modos de estudar a música e de olhar para a música. Por exemplo, embora seja um país de língua francesa e inglesa, o Canadá tem várias comunidades indígenas muito importantes na visão que o país tem de si próprio e na visão que quer construir para o futuro. Isso tem tido um impacto tremendo na maneira como os nossos colegas canadianos estão a tentar fazer avançar o pensamento epistemológico sobre a música.

Como é que estes povos pensam a sua música, o que significa a música para eles e o que podemos aprender com esse conhecimento? Como podemos fazer em conjunto uma pesquisa que valorize esse conhecimento e que não imponha de fora? Esse é um grande desafio. São esses olhares cruzados que nos ajudam a construir através da música uma visão do mundo muito mais plural. É isso que o CIMT promove e é isso que eu quero continuar a promover enquanto presidente do CIMT.

Há a tendência para presumir que a globalização tudo nivelará, sufocando as culturas locais e esbatendo a diferença. Ao mesmo tempo, pode-se afirmar que, como reacção a esse processo, assiste-se a uma redescoberta e celebração daquilo que cada cultura tem de específico. Da sua experiência, algum dos processos se está a sobrepor?
Acho que há muitos casos que demonstram essa reacção. Desde que Portugal entrou na Comunidade Europeia houve uma reacção no sentido de voltar às raízes, de saber quem somos, de procurar o que nos distingue. Essa abertura que o mundo permite hoje e o acesso a sonoridades, ideias, linguagens e artefactos é algo que enriquece e não esmaga necessariamente. Alan Lomax, pioneiro nas recolhas da música africana americana e que depois trabalhou na Europa, sobretudo em Itália e em Espanha, falou muito preocupado daquilo a que chamou o “acinzentamento cultural”. Fê-lo antes de existir a palavra globalização, mas esse receio não se concretizou. Haver vários tipos de música que se cruzam não só é enriquecedor como é, de facto, um processo antigo. Agora talvez ocorra mais rapidamente, mas é antigo.

Há muito que luta pela criação do Arquivo Sonoro Nacional. Em 2010 foi anunciada a sua criação em Évora. Porém, com a mudança de Governo nada mais se soube.
Estamos a continuar o esforço no instituto. Temos um núcleo arquivístico a crescer, estamos a formar pessoas e temos colaborado com outras instituições, como o Museu do Fado. Foi feita a digitalização quase completa do espólio adquirido [pelo Estado português] ao Bruce Bastin [em 2009] e há um projecto para fazer o mesmo com o espólio do Museu do Teatro, mil discos de 78 rotações, mas a Secretaria de Estado da Cultura não está minimamente sensibilizada para o assunto. Tentei passar a convicção de que não custa uma fortuna e é fundamental termos um arquivo sonoro que faça parte do conjunto de estruturas que preservam o património, como a Biblioteca Nacional, a Hemeroteca ou a Cinemateca. Mas não sei se passou - não têm havido contactos. Tendo em conta a conjuntura, estou a aguardar e a continuar a trabalhar internamente.

Olhando para o seu percurso, há alguma obra, algum feito pelo qual sinta especial orgulho?
Talvez a Enciclopédia [da Música Em Portugal no Século XX]. É a maior obra musicológica alguma vez publicada em Portugal. Mas o trabalho de formação é muito importante, porque vejo os jovens e sei que vai haver continuidade. Se eu desaparecer amanhã, o Instituto não morre e a etnomusicologia continuará e florescerá. Era esse o meu desejo há 30 anos. Era fundamental haver escola e isso, de facto, é motivo de grande satisfação.

O CIMT é um dos órgãos a que a UNESCO recorre na avaliação das candidaturas a Património Imaterial da Humanidade, classificação para a qual concorre actualmente o Cante Alentejano. Reúne condições para seguir o mesmo caminho do Fado?
Todas as condições. Está bem vivo e houve uma participação bastante activa e empenhada da comunidade, quer da parte das várias câmaras, quer de outras instituições, como a Casa do Cante. Acho que as coisas estão bem encaminhadas e estou convencida que será classificado.
 
 

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