Não há espelho para a dor

Olhar a dor dos outros à procura de auxiliares para o luto. Ajuda? Cada dor precisa de vocabulário original, e a de Julian Barnes dispensa eufemismos

E se juntarmos duas coisas que antes nunca estiveram juntas? Cada um dos três ensaios que compõem o mais recente livro do inglês Julian Barnes (Leicester, 1946) arranca com esta premissa. Cruzando memória, história, biografia e uma meditação sobre a perda, o luto, a solidão e a relação com os outros quando é brutal e necessário erguer um novo paradigma pessoal, o escritor volta a desafiar as fronteiras que separam géneros literários para exorcizar a própria dor. No caso, a que se seguiu à morte da sua mulher, a agente literária Pat Cavanagh, com quem Barnes viveu durante 30 anos e que morreu vítima de cancro em 2008. “Choro-a descomplicada e absolutamente”, escreve no terceiro ensaio, A Perda de Profundidade, construído num tom autobiográfico em que a contenção e o não-dito assumem um lugar tão ou mais preponderante do que as revelações.

É o texto que fecha o círculo deste Os Níveis da Vida, agora publicado pela Quetzal depois de O Sentido do Fim, livro vencedor do Man Booker Prize, em 2011. Nesse derradeiro ensaio, o foco estreita-se sobre o indivíduo às voltas com o seu chão e os seus limites. Um zoom in apontado ao íntimo que, aparentemente, contrasta com os dois textos anteriores, uma deriva por outras altitudes com muita informação sobre a história da aeronáutica em França e Inglaterra, colocando-se em perspectiva e explorando metáforas mais ou menos desbravadas — como a do sonho do voo para o homem a quem não foram dadas asas — mas aqui trabalhadas de modo original, para servir o que se segue ainda que de modo nada óbvio. Os dois primeiros ensaios funcionam então como uma espécie de preâmbulo do terceiro, mas esses pontos de contacto só se entenderão no fim. Como é que o sonho do voo no século XIX pode estar relacionado com o luto de um homem no século XXI? Talvez porque na busca da liberdade suprema no ar o acidente seja a queda, no mesmo chão por onde anda o indivíduo do último texto, e essa queda é sempre violenta.

“Juntamos duas coisas que ainda não se tinham juntado. E o mundo transforma-se. Neste momento as pessoas podem não dar por nada, mas não importa. De qualquer maneira, o mundo transformou-se.” É o arranque do primeiro texto, O Pecado da Altitude, onde se apresenta Gaspard-Félix Tournachon, que a história registou como Nadar, o excêntrico inventor que juntou, no século XIX, a fotografia e a aeronáutica. “Baudelaire chamava-lhe ‘uma surpreendente expressão de vitalidade’”, lê-se num cruzar de referências culturais, políticas e científicas da época, notas de alma, dedilhadas numa economia de palavra e de estilo sem mácula. A observação é válida para o texto que se segue, Ao Nível. Não há ruptura com os delírios criativos de Nadar, um romântico e um mulherengo, mas sempre dedicado à sua mulher — acaba os dias dela como seu enfermeiro.

Cruzando factos com fantasia, Barnes faz aparecer aqui a actriz francesa Sarah Bernhardt entre os pioneiros do voo em balão. Foi fotografada por Nadar e serve ao escritor para juntar amor e voo. Duas pessoas unidas pelo sonho de voar, Sarah e Fred Burnaby, coronel da Guarda Real de Cavalaria, membro do Conselho da Sociedade Aeronáutica. Ele apaixona-se por ela, serão amantes, mas ela recusa-lhe o pedido casamento. “Serei sempre, como se diz, balunática. Nunca embarcarei com ninguém nessa máquina mais pesada que o ar”, dir-lhe-á, num diálogo em que ressoa uma frase sempre presente: “Todas as potenciais histórias de amor são potenciais histórias de dor.” É como o coro na tragédia grega, eco que atravessa todo o breve livro e que ganha corpo na últimas 50 páginas. Continua: “Então porque aspiramos continuamente a amar? Porque o amor é o ponto onde se encontram a verdade e a magia. A verdade como na fotografia; a magia como no balonismo.”

E não lhe venham com eufemismos para contornar a dor, a morte, o luto. A experiência será sempre única e inexplicável. É o homem só na sua fraqueza, sem saber lidar com a fuga dos amigos revelada em evasivas, na recusa de nomear quando é preciso inventar ou reinventar toda a função da linguagem para verbalizar o que fica quando se ausenta o amor maior. Como adaptar a linguagem à nova condição? Que vocabulário para o desgosto? O eu aqui é o de Barnes. Sabe-se que a morte que conta é a de Pat, mas o nome dela nunca aparece. O pudor de nunca revelar qualquer coisa a mais perpassa e a fronteira nunca é ultrapassada. A reserva de Pat está na dor de Julian e Barnes conta-se nessa experiência íntima sem se expor no que poderia ser um excesso difícil de aturar para o leitor. Mas a dor é ao mesmo tempo pungente e risível. Há ironia aqui. “... uma velha amiga da minha mulher, americana, disse-me semanas depois de ela morrer que, estatisticamente, os que foram felizes no casamento voltam a casar-se muito mais cedo do que os que não foram felizes: muitas vezes no prazo de seis meses. A intenção era dar coragem, mas este facto, se o era (talvez se aplique só nos Estados Unidos, onde o optimismo emocional é um dever constitucional), chocou-me.”

E vem a procura do tal adequar de vocabulário. Nas primeiras saídas de casa, nos jantares com a amigos, na ida à ópera, em viagem. Na solidão, quando lembra o último livro que ela leu, a última viagem juntos, o último diálogo, sem nunca os nomear. A memória é o auxiliar e o inimigo a ordenar a palavra seguinte, a ditar no tempo. “Quatro anos depois, a mesma amiga disse: ‘Magoa-me o facto de ela pertencer ao passado.’ Se para mim isso ainda não é verdade, a gramática, como tudo o resto, começou a alterar-se; ela não existe realmente no presente, nem inteiramente no passado, mas num tempo verbal intermédio, o passado-presente.” É este último texto a dar grandeza ao livro. Os outros são seus auxiliares.

 

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