“Nunca me passou pela cabeça que poderia ser vendido”

Como é que alguém é apanhado por uma rede de escravatura? Depois do caso de Francisco, um angolano que foi escravo durante 26 anos, que revelámos há duas semanas, contamos agora as histórias de Dario e Paulo Brito.

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Dario está sentado à mesa de um café numa localidade na Roménia. Fábio aparece e conversam, bebem café, fumam cigarros, falam da oportunidade de um trabalho em Portugal. Dario tem dois filhos, já crescidos, é certo — mas está sem emprego. Agora que a Roménia vai entrar na época do frio, será ainda mais difícil arranjar alguma coisa nos próximos meses, pensa. O transporte até ao Alentejo será grátis, Fábio promete-lhe também sítio para dormir e 30 euros por dia para apanhar azeitona. Nas contas que Dario faz à vida, isto vale a pena, afinal 30 euros na Roménia dá para muita coisa. Convence mais duas pessoas a irem também. 

E lá vão eles: o ponto de encontro fica marcado para as 9h, em frente a uma escola de condução. Dario espera até por volta das 14h/15h para que os outros — mais de 50 — cheguem. Põem-se, então, a caminho de Portugal, uma viagem de três dias e três noites, passadas dentro do autocarro, dormindo encostados aos bancos.
Chegam à zona de Serpa algures no final de Outubro. Se tudo correr bem, Dario telefonará ao filho de 22 anos para lhe dizer: “Anda trabalhar.” Mas isso nunca chegou a acontecer.

À chegada a Portugal, os que vieram na camioneta foram separados em grupos. Foi pedido a Dario o documento de identificação para “não trabalhar sem documentos”, um serviço pelo qual teria de pagar. Enfiaram-no a ele e a mais de uma dezena de pessoas, mulheres e homens, jovens e velhos, numa casa: “Dormíamos no chão, não havia sítio para guardar a roupa, não era fácil cozinhar e havia uma única casa de banho. Tínhamos de acordar às 5h, imagine o que se passava na casa de banho [com tanta gente a querer usá-la ao mesmo tempo]…” E o dia-a-dia era 12 horas de trabalho a apanhar azeitona, com curto intervalo para almoço, pressão para não pararem, para não fumarem, para trabalharem mais e mais rápido. “Só bebíamos água uma vez por dia.”

Afinal, a casa custava 100 euros por pessoa. Afinal, trabalhavam e, às vezes, recebiam não 30, mas 10 euros e, afinal, tinham de os usar para pagar dívidas — do transporte, da casa, da comida —, portanto, ficavam sem nada. “Com tudo o que acumulei de dívidas, devia trabalhar mais duas/três semanas para as pagar.” O patrão, dono de uma empresa de prestação de serviços a uma herdade, “até falava de forma doce” com eles. “Tinha outras pessoas que nos tratavam mal, ameaçavam: ‘Não vais sair daqui, não vais conseguir sair deste país porque os documentos estão connosco’.” Depois começavam a falar “da família, dos pais, dos filhos” — a ameaçar — “e assim manipulavam-nos”. Dario descreve estas outras pessoas como sendo o braço-direito do patrão ou os generais — ele e os outros “eram os escravos”.

"O meu amigo vendeu-me

“Não imaginava o que se ia passar”, conta-nos, enquanto relata aqueles quatro dias em que esteve a trabalhar em cativeiro no Alentejo, perto de Serpa. Com uns olhos muito vivos, Dario relembra agora, mais de um mês depois, os acontecimentos. Fala como alguém que já analisou e reflectiu sobre o assunto várias vezes. O que se passou: “O meu amigo vendeu-me.” O que não o “deixa dormir”: “O facto de quem me vendeu ser um compatriota.” 

Logo no início, começou a ficar óbvio que havia qualquer coisa errada, quando chegou à casa e viu as condições, conta. E depois quando se viu confrontado com o ritmo intenso de trabalho, a troco de “nada”. “Posso distinguir o que está certo do que está errado. A gente ali não podia estar. Como o trabalho não era pago e as condições não eram boas, era preciso ser uma pessoa forte para conseguir sobreviver naquela situação.”

Em casa, ele e os colegas falavam entre eles: “Somos maltratados, estamos cheios de dívidas, não temos documentos, a comida não chega, trabalhamos muito, as condições são más.” Não sabiam quem os poderia ajudar. Porque uma coisa era falarem entre eles, outra seria accionar o alerta para o exterior. Além disso, não conheciam ninguém na zona de Serpa, onde estavam alojados, não tinham confiança em ninguém, não falavam português, sabiam lá quem poderia ir fazer queixa ao patrão e as consequências que viriam daí. Mas um dos colegas tinha trabalhado na polícia da Roménia; começou a “mexer-se” e ligou à embaixada, que contactou as autoridades.

Não era a primeira vez que a embaixada recebia alertas do género. A recorrência deste tipo de casos em Portugal que envolvem cidadãos romenos levou-a mesmo a criar o cargo de adido para assuntos do interior que assegura a comunicação entre polícias dos dois países, “facilitando em tempo real a circulação da informação sobre as pessoas”.

Apesar de não ter dados sobre números de vítimas que já ajudou, o embaixador Vasile Popovici conta à Revista 2 que os alertas têm chegado de várias formas: alguns são feitos directamente pelas vítimas, outros por familiares na Roménia. “Mas estamos sempre perante a mesma situação: um grupo de pessoas é recrutado, através de anúncios de propostas de trabalho, sendo trazido para Portugal sem contrato de trabalho, apenas com base em promessas de pagamento, de alojamento e transporte; no local, descobrem que têm de dormir em colchões colocados directamente no chão com outras dez, vinte pessoas, apertados numa única divisão, em espaços isolados, nalguns casos, em antigos estábulos, em condições precárias de higiene (sem água corrente, sem casa de banho), que devem pagar o transporte e a alimentação ao dobro e ao triplo do preço.” E mais: “São-lhes retirados os documentos de identidade sob pretexto da redacção dos contratos; o tempo de trabalho prometido (8 horas) não corresponde ao tempo de trabalho efectivo (12 horas e até mais); o pagamento é irrisório (já tivemos casos em que foi pago 1 euro por dia); no fim, resulta que as vítimas devem dinheiro aos traficantes, as vítimas recebem maus tratos, ofensas...” O embaixador não tem dúvidas: “É claro que estamos perante situações de escravatura moderna.” Que se passam em Portugal.

Dario gostava de ter sido ele a fazer a chamada telefónica que os libertou. Mas não tinha o telemóvel recarregado, nem dinheiro para o fazer. Teve medo, muitas vezes. Acabou por participar no processo de libertação, com cerca de mais dez pessoas, e foi preciso coragem para planear a fuga. “Fomos nós que demos o primeiro passo e tivemos a iniciativa de sair dali. Não me arrependo do que fiz. Podia ter corrido mal, mas tivemos muito apoio da polícia, da embaixada.” Mais tarde, uma parte do resto do grupo que tinha ficado para trás juntou-se a eles, conta, já depois de estarem a salvo. A 2 de Novembro, Dario chegou a um Centro de Acolhimento e Protecção (CAP) a vítimas de tráfico de seres humanos do sexo masculino, gerido pela associação Saúde em Português, ao abrigo de um projecto financiado através da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

Era electromecânico na Roménia, tem o 12.º ano e 30 anos de prática a pintar e a fazer esculturas. Uma das actividades a que se tem dedicado é a escultura. Já criou várias peças, como uma caixa-jaula, feita com papel de jornal, superfície lisa, pintada de cinzento-claro com o detalhe de quem trabalha nisto há muito. Lá dentro, estão umas figuras em papel, presas. Mostra outra escultura que criou, em pano, um homem debruçado, de joelhos, acorrentado, vergado. “Isto é como eu me sinto, aquilo que senti e que não posso dizer às pessoas que não sabem o que se passou no meu coração.”

Vendidos por 5 dólares

Em 2010, Kevin Bales, co-autor do primeiro Índice Global de Escravatura 2013 (publicado em Outubro pela Walk Free Foundation, organização que se dedica à erradicação da escravatura), dizia que a média do preço de um escravo no mundo era de 90 dólares, e que, em determinadas zonas como Índia ou Nepal, tinha encontrado escravos a serem vendidos por 5 ou 10 dólares. O Índice estima que existam 29 milhões de escravos no mundo e entre 1300 e 1400 em Portugal — o que é, segundo Danny Smith, autor de Slavery Now and Then, um número superior ao tráfico de escravos deslocados de África para as Américas durante quatro séculos (calculados em 12,5 milhões).

É uma realidade que começa a aparecer mais frequentemente nas notícias — o caso de Dario foi reportado (e está a ser investigado pelo Ministério Público e em segredo de justiça), assim como o de outro grupo de romenos na mesma localidade e também na apanha da azeitona, resgatados a 13 de Novembro pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), e da qual resultou a prisão preventiva de cinco pessoas (mais um que tem de se apresentar diariamente às autoridades).

Se há um aumento real ou um aumento da visibilidade, é difícil de aferir. Mas num relatório sobre Portugal feito pelo Grupo de Peritos em Acção Contra o Tráfico de Seres Humanos (GRETA), organização do Conselho da Europa, alertava-se para o crescimento, entre 2008 e 2011, de casos de vítimas de tráfico para exploração laboral (46%).

Na Europa, estarão cerca de 1,8% do total de escravos, número baixo comparado com outras zonas geográficas, mas é um dado surpreendente porque, sublinhavam os autores do Índice, em alguns países europeus ocidentais a escravatura poderia nem sequer existir. A verdade é que, como alertam várias organizações não-governamentais, estes números estão longe de espelhar a realidade — há muitas vítimas que não denunciam, muitos casos que nunca se chega a saber. Investigadores como Monti Datta, co-autor do Índice, acham que a crise económica poderá aumentar os riscos de escravatura: “Haverá pessoas a atravessar fronteiras e a colocarem-se numa situação em que estão a trabalhar na construção, na agricultura, ou no trabalho forçado sob condições desumanas”, disse à Revista 2. “A tragédia desta questão é que qualquer um de nós, se estiver nas condições económicas erradas, pode ser susceptível de aceitar trabalhos fraudulentos que levam à escravatura.”

É isto justamente que espelha a experiência de Dario, alguém que veio ao engano para Portugal e diz claramente: “Nunca me passou pela cabeça que poderia ser vendido ou tratado como objecto.”

Viver numa casa-abrigo

Por enquanto, Dario está numa casa-abrigo em local desconhecido. Quando alguém é vítima de escravatura, associada ao tráfico de pessoas, pode contactar a linha de emergência, que encaminha o caso para as autoridades competentes e acciona os mecanismos de resgate e protecção. O CAP onde está Dario é gerido pela Saúde em Português, o primeiro para homens, que existe desde Maio. O fundador da Saúde em Português, Hernâni Caniço, explica que o acolhimento passa por vários processos, entre a estruturação dentro de objectivos, avaliação clínica, por exemplo, até se iniciar a fase da integração social.

Mas há um CAP para mulheres a funcionar desde 2008, gerido pela APF Norte. A psicóloga Rita Moreira, que trabalha com vítimas de tráfico desde 2007, e coordena a equipa multidisciplinar do Norte para assistência e protecção a vítimas de tráfico de pessoas, explica que estas chegam identificadas como tal pelos órgãos de polícia criminal — ou se o contacto é feito directamente ao CAP é o centro que fala à polícia para que essa identificação seja feita.

Além de vítimas de tráfico para exploração laboral ou escravidão, como é o caso de Dario, os CAP acolhem vítimas de todo o tipo de tráfico (para exploração sexual, mendicidade, extracção de órgãos e outras actividades criminosas).

A equipa tenta perceber as necessidades da vítima, “às vezes acontece que precisa do básico, de protecção e de um projecto de vida”. Se sim, é encaminhada para uma casa-abrigo, onde pode ficar um ano ou, caso se justifique, mais tempo — o que acaba por acontecer raramente, “porque ninguém está numa casa-abrigo como projecto de vida”.

Quem entra tem de se comprometer a “cortar relações com os traficantes e a colaborar com a investigação”. Parte quando quiser. O CAP fica com a supervisão até o seu projecto de vida estar seguro. Depois, “a pessoa é que decide o tipo de laço que quer ter connosco”. Mas o que acontece a seguir às pessoas partirem “varia tanto quanto variam as pessoas”. Quando as vítimas e as suas famílias no país de origem são ameaçadas, a equipa faz a coordenação com as autoridades dos respectivos locais para assegurar a protecção e para assegurar também que não caem de novo nas redes — o que por vezes acontece, mesmo depois de as denunciarem.

O modus operandi destas redes, dizem-nos os especialistas com quem falámos e lê-se em diversos relatos sobre o tema, é parecido. A confiscação dos documentos de identificação é regra para quem se quer apoderar dos movimentos de alguém. É por isso que quando dizem a Alberto Matos, membro da direcção nacional da Solidariedade Imigrante (SI) e responsável pela delegação regional de Beja, que a associação só trata de papelada para os imigrantes, ele responde: mas isso é fundamental.

Fundamental para o trabalhador mudar de patrão se quiser — andar, no fundo, em liberdade, porque “sem papel” “não se é ninguém”. À SI chegam pedidos de ajuda de imigrantes que se viram enredados em esquemas de escravatura, algo que tem notado com mais frequência desde 2010 — embora os primeiros registos sejam de 2009.

Sem documentos

O aumento da produção nos olivais tem trazido mais mão-de-obra estrangeira ao Alentejo, num esquema que facilmente pode passar despercebido às autoridades: quando são cidadãos europeus, não precisam de declarar que estão a trabalhar em Portugal nos primeiros três meses e como geralmente o tempo da apanha nem isso dura “pode não haver contratos, [declarações à] segurança social e, mais dramático, às vezes não há salário”. “O tipo de gente que vem da Roménia vem de zonas recônditas, sem grande escolaridade e sem dominar a língua, estão completamente nas mãos de quem os traz”, diz no pequeno escritório da SI.

Na SI, aparecem pessoas a quem foram retirados os cartões de identificação que lhes pedem ajuda para regressar. Mas raramente se dispõem a ficar à espera que as investigações terminem. “Sem eles, não há caso e há impunidade. Aos que se vão embora, nós dizemos sempre: ‘Vocês avisem lá nas vossas aldeias, não venham assim sem se informarem.’ Mas há sempre uns que não sabem, estão desesperados e vêm de qualquer jeito. Ainda por cima, temos ameaças e coacção sobre as famílias nos países de origem, que reproduz o esquema da escravatura e cria pavor. Portanto, ir a um tribunal ou apresentar queixa é o menos recomendável porque fica sujeito a represálias.”

Uma das entidades por que passaram algumas das vítimas do tipo de engodo em que Dario caiu foi a Cáritas de Beja, onde têm chegado todos os anos casos semelhantes de pedidos de ajuda — mas não com a dimensão dos dois grupos que acolheram este ano, em Novembro, com cerca de 30 pessoas cada, e num dos quais Dario estaria incluído (o outro foi aquele apanhado pelo SEF). Por não terem espaço suficiente, instalaram-nos em tendas — o primeiro grupo ficou apenas um par de dias, o segundo ficou mais de 15 porque os engajadores foram identificados, detidos e as vítimas tiveram de esperar para testemunhar no Tribunal de Beja, diz a Cáritas.

No edifício da Cáritas de Beja, entram e saem pessoas. Subimos umas escadas e numa das salas está um grupo de idosos a cantar. Entramos para o gabinete de Teresa Chaves, a presidente, que diz já terem ajudado várias vítimas de exploração laboral — deixa a conclusão sobre se se tratava de escravatura para os tribunais. Mas têm sido casos isolados, “duas, três, cinco pessoas que fugiam e conseguiam chegar à Cáritas ou Segurança Social ou Polícia e pedir ajuda”. Lembra-se de uma mulher que teve um acidente vascular cerebral, foi parar ao hospital e assim denunciou a situação. Ou de um grupo que andava pelos caixotes do lixo à procura de comida, alguém viu e alertou a Cáritas, que conseguiu perceber que estavam a ser explorados.

Mas estes casos recentes que envolveram grupos são inéditos, analisa Ana Soeiro, directora técnica na Cáritas, mediadora do Centro Local de Apoio ao Imigrante: a especificidade foi um grupo ter-se juntado para denunciar a situação. Do tempo que passou a apoiá-los, e da experiência que tem de outros anos, descreve situações em que os trabalhadores nunca contactam com os proprietários, não sabem sequer sinalizar qual é o local onde estão a trabalhar, são transportados em carrinhas do sítio onde vivem para o sítio onde trabalham.

Escravidão por dívida

Se se andar nas estradas de Beja antes do pôr do Sol, é fácil detectar carrinhas com trabalhadores a saírem dos terrenos de olivais que se espalham pela paisagem. Meses antes, seria das vinhas que viriam.

Claro que nem todas têm trabalhadores a ser explorados, mas a separação do local de trabalho e do local onde vivem tem sido uma prática mais comum, analisa Carlos Graça, inspector local da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) — porque mesmo que desconfie da falta de condições de habitabilidade em que vive um grupo de trabalhadores, a ACT só pode fiscalizar as que estão no espaço da exploração ou as que estejam contratualizadas pelo empregador; não pode ir a casas de pessoas. E é lá que estão muitas vezes os sinais de que os trabalhadores estão a ser maltratados.

As luzes vermelhas acendem-se, diz Carlos Graça, quando percebem que os documentos de identificação de vários trabalhadores estão apenas com uma pessoa ou quando têm notícia de que há um grande controlo de movimentos. 

Pedro Pimenta Braz, inspector-geral da ACT, não tem dúvidas de que “a escravatura moderna existe em Portugal”, sobretudo na agricultura, e a maior parte das vezes “estamos a falar de escravidão por dívida”, em que “o trabalhador fica preso à entidade empregadora” — como Dario poderia ter ficado se não conseguisse escapar. Depois, há as situações cinzentas, em “que roçam a escravatura moderna, mas não podem é ser tipificadas como tal”, mesmo sendo “extremamente graves” — quando, no limite, a pessoa pode fugir, não tem os documentos confiscados, nem recebe ameaças, por exemplo.

Para a ACT, a definição de escravatura, punível com pena de 5 a 15 anos, é a que vem no Código Penal: “Quem a) Reduzir outra pessoa ao estado ou à condição de escravo; ou b) Alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com a intenção de a manter na situação prevista na alínea anterior.” Outras organizações e investigadores da matéria têm uma definição mais alargada e, como diz Monti Datta, esta é uma definição que pode mudar consoante o lugar profissional de quem a define. Para ele, escravatura “é muito simples”: “Se alguém é preso sob violência ou ameaça de violência, não consegue escapar e consegue menos dinheiro do que aquele de que precisa para viver, isso é escravatura.”

Este ano, a ACT participou ao Ministério Público — que terá de investigar — 60 casos de escravatura moderna, revela o inspector-geral. Problema: é um crime difícil de provar. “Entre o tempo em que alguém faz a participação e que vamos lá, já não apanhamos os trabalhadores.” Ou então, chegam ao local e os trabalhadores sentem-se inibidos, “por exemplo, escondem-se, fingem que não falam e não percebem a língua”. Mesmo quando há queixas dos trabalhadores, a ACT nem sempre consegue provar. “Como é que não conseguimos provar? Porque a única forma é através da colaboração de outros colegas. Quando há um sozinho que apresenta queixa, ou dois, e os outros negam, a prova documental que era fundamental arranjar é muito complicada.”

Num dos casos recentes de Beja, só metade dos 52 trabalhadores é que quis depor contra os “angariadores”, segundo o embaixador da Roménia.

Depois, há um obstáculo maior. Grande parte das explorações agrícolas subcontrata prestadores de serviços que, por sua vez, subcontratam outros. Num mesmo terreno, podem estar várias empresas a apanhar azeitona. E é apenas em relação a estas que a ACT pode actuar.

Quem é o teu patrão?

O nevoeiro atravessa as estradas de Ferreira do Alentejo. Às 8h, o frio enregela os ossos, mesmo no carro da GNR que entra por uma propriedade adentro. É o primeiro de uma fila de viaturas onde vão ainda a ACT, a Autoridade Tributária e a Segurança Social para uma operação de fiscalização. À entrada, há um carro parado com uma pessoa lá dentro, a mexer no telemóvel — a equipa desconfia que para avisar quem está lá dentro que os inspectores e a GNR vêm aí.

Dois cães ladram à volta do encarregado que se aproxima e responde às perguntas da ACT. O proprietário é identificado como sendo espanhol e aqui estarão duas empresas a gerir cerca de 70 trabalhadores, aparentemente, com dois donos. Com cerca de 700 hectares — o equivalente a 700 estádios de futebol, segundo Carlos Graça —, a propriedade torna-se também lugar fácil para trabalhadores se esconderem e fugirem, como desconfiam os fiscalizadores.

Mandam chamar os trabalhadores, que aparecem detrás das oliveiras, em bandos. Mulheres e homens, jovens e velhos, muitos com o rosto magríssimo, corpo enrugado, mulheres de lenço na cabeça, homens de boina, vários a fumar juntam-se em grupos. As mochilas e os casacos ficam no chão. Mais do que propriamente assustados, alguns vagueiam o olhar, tentando perceber o que dizem as autoridades em português. Falam uns com os outros em romeno, ninguém percebe o que dizem. Pouco tempo depois de as autoridades pedirem a identificação, percebe-se quem são os líderes, quem tem mais poder, quem se chega à frente para falar e cala o outro com a desculpa de que esse não percebe português. No final, identificam-se cerca de 45 trabalhadores.

— Quem é o dono da empresa?, pergunta o inspector.

Movimento, confusão. Dois ou três jovens agarram num homem com os seus 50 anos e trazem-no para a linha da frente.

— É este.

O homem tem os olhos tombos e está como que apático. Não fala português. Afinal apareceu um jovem, o suposto filho, de uns 20 e tal anos, a falar por ele. Forma-se uma fila de trabalhadores.

— Quem é o teu patrão? Quanto ganhas?, pergunta-se a cada um.

Todos dizem ganhar 30 euros por dia e trabalhar 5 dias por semana. Mas não há folhas com o registo de horas de trabalho, portanto nem o patrão sabe com rigor quanto é que cada um dos empregados tinha trabalhado, critica a ACT.

— Como é que sabes quantas horas trabalhou cada um?, pergunta o inspector.

Ao contrário do que garantia à Revista 2 um dos patrões, apenas um trabalhador estava devidamente registado na Segurança Social, que era o próprio empresário, concluiu a inspecção. Não havia registo de exames médicos aos trabalhadores, a maioria não estava coberta por seguro de acidente de trabalho e havia uma menor de 15 anos a trabalhar. As empresas prestadoras de serviço são portuguesas, mas os donos romenos: vão receber coimas, e em relação a uma delas foi feita uma participação-crime por causa da menor. “A exploração agrícola é solidariamente responsável pelo pagamento das coimas levantadas a estas duas empresas”, explica Carlos Graça. “Não acredito que eles [as empresas multadas] paguem. A regra é que nunca pagam, porque os donos desaparecem.”  

Nenhuma das empresas foi alvo de suspeita de escravatura — mas verificou-se que havia exploração, garante Graça. O que se passa em muitos esquemas é que os patrões até chegam a pagar os tais 30 euros prometidos por dia, depois resgatam o dinheiro de volta através do esquema das falsas dívidas numa troca onde nada fica registado. E o que não tem rasto é difícil de provar.

No meio deste esquema, qual é o papel do proprietário dos terrenos? Tem a ACT falado com alguns? “Quando são portugueses, geralmente, 99,9% das vezes o discurso é de negação do problema. Certamente, as opiniões não seriam assim se toda a cadeia fosse penalizada”, diz Pimenta Braz.

Porque a verdade é que quem acaba por ser sancionado é “o fim da linha, a entidade que contratou os trabalhadores”. “Isto é, quem lucra com o negócio, quem esmaga o custo do trabalho não é sancionado. Quem lucra com a situação? As grandes agro-indústrias, que têm o preço mais barato; o dono agrícola da herdade ou da indústria, que consegue ter mais-valias porque o custo do trabalho é mais reduzido; o primeiro subempreiteiro porque com o que paga a quem contrata ganha algum dinheiro; nós, consumidores, que compramos a preços mais módicos e ficamos todos satisfeitos. E o problema só existe para o trabalhador. Enquanto não alterarmos isto em todo o espaço da União Europeia, andamos a lutar contra moinhos de vento.”  

Quantos quilos de azeitona apanhava por dia, Dario não se lembra. Assim como não se lembra do nome da herdade para a qual o patrão prestava serviços. Ia e vinha para os terrenos sem saber quem, no fundo, iria usar as azeitonas que passaram pelas suas mãos.

À filha e ao filho ainda não contou o que se passou. Não quer preocupá-los. E preferiu ficar em Portugal, tentar a sua sorte, ao contrário dos outros que regressaram à Roménia. Afinal, a razão que o fez sair ainda é válida: não tinha trabalho.

Por estes dias, as peças que cria não são para vender, ele não tem qualquer pretensão de ser artista. Mostra-nos um caderno-dicionário, capa com pano, feita por ele: numa coluna tem as palavras ou frases escritas a vermelho em romeno, e à frente, a preto, a tradução em português. Há palavras como “cartaz”, “correr”, “assaltado”, “aprender”. Noutra folha, as expressões em português aparecem a vermelho: “O prazer é todo meu”, “Passou bem?”, “Queria que me explicasse” ou “Qual é a sua opinião?”

Diz: “Se virmos num dicionário, o escravo existiu sempre e hoje existe. O escravo não tem nenhum direito, tem direito a viver e a trabalhar. Não tem nada mesmo. ‘Escravatura’ é uma palavra feia mas está na moda. Agora que já fui vítima, percebi o que é ser escravo. Hoje pratica-se escravatura em todo o mundo, pratica-se escravatura dos velhos tempos. Estamos em 2013, no século XXI, dizemos que somos europeus mas uma parte de nós são escravos.”

Usava uma bengala, quando ma pedia, já sabia que me ia bater 

Imigrantes em Portugal e emigrantes no exterior: a escravatura acontece mesmo aqui ao lado. Paulo foi ameaçado, mas conseguiu fugir, conta.

Quando Paulo Brito atendeu o telefone para marcarmos a entrevista, disse-nos que queria dar a cara. Voltámos a perguntar se tinha a certeza da sua decisão quando nos encontrámos em Penafiel. “Certeza absoluta.” Tem esperança de que o seu gesto alerte outros a não entrarem no mesmo engodo que ele. E, quem sabe, acelere um processo que está parado porque o homem que ele e o Ministério Público acusam, entre outros crimes, de escravidão e tráfico de pessoas — o espanhol Manuel Machado (nascido em 1980) — está desaparecido e tem faltado sucessivamente aos julgamentos. O último esteve marcado há um ano. De acordo com a Procuradoria-Geral da República, Manuel Machado “foi declarado contumaz no dia 21 de Dezembro de 2012, aguardando-se desde essa data conhecimento do seu paradeiro ou que o mesmo se apresente em juízo”.

Passaram-se mais de cinco anos desde que Paulo seguiu para Espanha: terá saído em finais de Agosto e regressado em meados de Novembro de 2008, um período durante o qual diz ter sido espancado sucessivamente, ameaçado, escravizado. Segundo a Polícia Judiciária (PJ), Manuel Machado já tinha antecedentes criminais em Espanha por crime idêntico.

“Fui um escravo, fui um sem-abrigo, fui tudo e mais alguma coisa. Só não tive foi cabeça para fazer as coisas de outra forma”, diz. O que é que teria feito? “Tinha usado mais de mim, não tinha chegado a tanto.”

Depoimento na primeira pessoa editado a partir de excertos de uma conversa com Paulo Brito.

2008

“Na altura em que fui para Espanha, tinha 18, 19 anos, e foi a seguir a uma época muito difícil para mim. Faltava muitas vezes à escola, tinha faltas disciplinares por mau comportamento, essas coisas inúteis: tenho o 6.º ano e estou muito arrependido de não ter cabeça para mais. Então aí com uns 16 anos puseram-no num colégio, a Oficina de S. José, no Porto. Saíamos ao fim-de-semana para ir a casa. No colégio, um grupo de jovens matou uma transexual [a Gisberta, em 2006]. Com aquela transformação, o colégio ficou sem alegrias. Houve uma pessoa que adorava, o director-geral — era o meu pai, o meu amigo, um irmão — que se suicidou ao ver esta situação. Passados dias, faleceu o meu irmão do meio, na praia da Nazaré, afogado.

Tenho seis irmãos. Os meus irmãos vivem com a minha mãe, menos a minha irmã, que vive em Trás-os-Montes e foi criada com os meus avós, deve ter os seus 30 anos. A minha mãe é doméstica, recebe o Rendimento Social de Inserção, é a única da família porque o resto vai trabalhando. Não tenho interesse nenhum em depender disso.

Digo sempre que não tenho pai. Porque quando nasci ajudou a criar-me até aos 2/3 anos e depois pegou nas coisas e abalou sem olhar para trás. A minha vida foi sempre muito triste. Tenho um irmão esquizofrénico e havia vezes que eu não queria entrar em casa. Ele agora está internado.

Saí do colégio aos 18 anos. Depois aceitei um convite para ir trabalhar para as feiras.

Quando o conheci [ao Manuel Machado], estava eu a trabalhar numa roulotte de pão com chouriço. Ele apareceu lá, pediu uma hambúrguer para ele, para a filha e para a mulher. É um homem dos seus 30. Era feirante, tinha um carrossel pequenino, com dois ou três helicópteros. Convidou-me: ‘Ajuda-me a pôr o taipal para cima.’ Começámos na brincadeira, fez aquela aproximação para experimentar. Ele viu que eu ia nas brincadeiras dele, pronto…

Quando acabaram as festas, convidou-me a trabalhar com o sogro dele, que tinha um carrossel. Estive lá dois/três dias. Acabou a feira e recebi um telefonema dele a dizer: ‘Já estou a chegar ao Porto’, ‘espera que vou aí buscar-te, vou falar à tua mãe que vais para Espanha’. Veio ele, a mulher e o empregado [português].

Entrei nesta aventura porquê? Porque eu nunca tinha ido a Espanha. Foi uma aventura estúpida. Chamou-me, fez-se amigo da minha mãe. Prometia-me 25 euros por dia para eu ir trabalhar para as vindimas.

[Cândida do Nascimento Sardinha, a mãe, de 56 anos, conta-nos por telefone que Manuel Machado quando apareceu em sua casa parecia um homem “bem falante, um patrão às direitas”, por isso é que a “convenceu”. Disse-lhe que o filho ia ser “muito bem tratado”, que ia receber X por semana e que até lhe mandaria a ela dinheiro.]

Pediu-me o bilhete de identidade, que nunca chegou a devolver. Fomos nesse dia para Espanha, numa carrinha Mercedes branca de nove lugares. Partimos eram umas seis horas. Quando entrei na carrinha, já lá estava o outro rapaz, que tinha mais ou menos a minha idade.

[Paulo Brito não se recorda bem da sequência dos acontecimentos no relato que nos faz, por vezes mistura datas e locais para onde vai. Cruzamos mais tarde a informação que nos dá a PJ do Porto com a acusação do Ministério Público. Sebastião Sousa, inspector-chefe da PJ do Porto que lidera uma equipa de investigação de crimes de escravidão e tráfico de seres humanos, diz-nos que em 26 anos de experiência aprendeu que “a amplitude espaço-temporal às vezes é tão grande” que vítimas como Paulo “têm dificuldade em situar-se”. A confusão é, portanto, mais do que normal. De acordo com a acusação, Paulo foi levado para diversos locais em Espanha e chegou a fazer pequenos trabalhos de construção civil em casa dos sogros de Manuel Machado: “Via-se que era gente com muito dinheiro”, conta-nos ele. Nas vindimas, em Logroño — La Rioja —, o trabalho decorreria normalmente segundo a sua descrição, apesar de na acusação se ler que Manuel Machado os ameaçou que não poderiam sair do local senão acompanhados por ele. Não receberia um tostão na altura pelo trabalho feito, mas nada o prepararia para o que se seguiu. O pesadelo maior terá começado em Cañada Real, perto de Madrid, onde Manuel Machado teria uma casa.]

Quando chegámos a Cañada Real, avisou-nos: ‘Vocês daqui não saem.’ Estávamos os dois a dormir num camião-frigorífico, num beliche. Fomos apanhar papelão. Andávamos pelas ruas de Madrid, nos caixotes do lixo, púnhamos [o papelão] para dentro de um camião de caixa aberta, só saíamos quando o camião estivesse cheio. Logo no primeiro dia que fomos ao papelão, ele queria rapidez. Estivemos até às 4h, 5h da manhã a trabalhar, dormíamos uma hora. Enchíamos o camião, íamos à fábrica despejar. Ele vendia o papelão à fábrica. Depois começámos a recolher paletes. Comida havia pouca. A mulher fazia o almoço só para ele e para a filha, comíamos os restos da comida deles, muitas vezes recebi ossos e já lá tinham estado outras pessoas a roer…

Era estranho ele não nos ter pago. Já tinha pensado: ‘Há muitas pessoas que vêm para o engano, pensam que é uma coisa e depois é outra. Se calhar é isso que nos está acontecer.’ Isso pensei na primeira vez que levei porrada: ao subir para a carrinha, uma palete nova partiu-se. Íamos no camião, havia dois lugares à frente. [Ele disse ao outro empregado]: ‘Muda-te.’ Passei para o lado dele. E enquanto estava a guiar batia-nos com a mão.

Para ir à casa de banho, tinha de pedir autorização e ele vinha atrás. Para tomar banho, ele tinha de estar a ver. Basicamente, tinha de andar com um cadeado dele a puxar-me, só faltou isso. Isto foi depois de eu tentar fugir a primeira vez.

Estava a trabalhar para uma pessoa que não valia nada, sem escrúpulos, só faltava chamar-lhe cão, que é o que ele é. Houve muitas vezes em que eu queria fumar um cigarro, ele fumava, mandava o cigarro para o chão, obrigava-me a apanhar o cigarro do chão e a fumá-lo — cheguei a fazer isso, senão ele batia-me (também estava com aquela aflição de fumar um cigarro que uma pessoa esquece-se de tudo totalmente). Ele era aquele tipo de pessoa que só em filmes, só em novelas é que acontece. Houve um episódio da Liliane Marise em que ela ficou presa. Eu fiquei como ela, durante três ou quatro horas com as mãos amarradas. Dizia para eu ir buscar paus para acender a lareira. Os paus eram para mim, para me bater com eles. Usava uma bengala, quando ma pedia já sabia que me ia bater com ela.

Ele batia nas partes do corpo que não se vêem. [Eu] Dizia-lhe: ‘O quê, já me vais bater outra vez? Olha, bate-me.’ Ficava ali parado, sem fazer nada. Chorava, claro que chorava. Sentia as dores.

Até que um dia o que é que eu fiz? Nós estávamos a roubar luzes dos postes para abastecer uma parte da casa dele. E cortaram a luz, não havia hipótese de remendar. Íamos remendar com o gerador. Pediu-me para ir ao sogro buscar dois bidões de gasolina. Reparei que um dos bidões estava furado. Esfreguei a gasolina toda no meu corpo. ‘Agora vais ver se não saio daqui, nem que seja morto.’ E incendiei-me, comecei a arder todo. Comecei aos gritos porque a minha intenção era morrer ali. Veio logo com panos para me tapar e água. Ele obrigava-me a esfregar pasta de dentes no corpo, para acalmar, e água oxigenada. [Não o levou ao hospital. Preparou depois a fuga.] Eram 4h fomos dormir. Pensei: vou fingir que estou a dormir, deixo-o [outro empregado] adormecer. Ele ressonava, quando ele ressonar, visto-me e saio porta fora. Assim aconteceu. Vesti-me. Não senti dor nenhuma ao vestir-me. Saltei a vedação e comecei a correr estrada fora [terá sido a 16 de Novembro].

Estive na rua Calle del Sol, mas depois saí de lá, com medo que ele aparecesse. Estava a dormir debaixo de uma carrinha velha. Apareceu uma senhora que me levou para um albergue e no albergue [da Segurança Social espanhola] deram-me dinheiro para o transporte. Pagaram-me o bilhete de comboio até Vigo e deram-me 10 euros para vir de Vigo para o Porto. Cheguei ao Porto no dia 20 de Novembro de 2008.

[Durante o período em que Paulo esteve em Espanha foram várias vezes em que a mãe diz ter tentado ligar-lhe. Quando conseguiu falar, foi em alta voz, com Manuel Machado ao lado, e “o Paulo não podia dizer nada”. “‘Paulinho, estás bem?’, perguntava. Ele demorava muito tempo a responder”, conta. Outras vezes, ligava e ele tinha o telemóvel desligado. “Estranhei, por isso estava sempre a ligar. Não me lembrei de fazer queixa à polícia, também não sabia de nada.”

Quando o filho apareceu, “o corpo dele estava uma miséria — o outro batia-lhe com paus, com cintos, nem sei…”. Na altura, pouco contou, “mal conseguia falar, estava traumatizado”. “Chorei tanto… Ele vinha com medo. Mal via passar uma carrinha branca...” O patrão ainda ligou à mãe a dizer que o filho tinha fugido e “que o tinha roubado, para se desculpar”. “Às vezes, tenho medo também. Quando vejo uma carrinha branca, escondo-me.”

A 13 de Junho de 2009, Paulo refugiou-se na Biblioteca Municipal do Porto, perto do jardim de São Lázaro.]

A dada altura tive o pressentimento de que estava alguém ali. Ele estava com a carrinha, passou e parou, tentou-me apanhar. Meti-me para dentro da biblioteca, pedi ajuda. A polícia municipal levou-me à judiciária para a judiciária me resolver isto.

[Manuel Machado seria detido a 29 de Junho, segundo Sebastião Sousa, depois de buscas da PJ e “inequivocamente reconhecido”. Quando é detido, alega “tudo ao contrário”, inclusivamente que foi Paulo que o contactou para trabalhar com ele e que até lhe iria pagar 35 euros por dia para as vindimas, relata o investigador. Seria apresentado no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, mas foi-lhe aplicada uma caução de mil euros, que ele pagou. Nunca mais foi visto.

Este não é o primeiro caso de escravatura que chegou aos tribunais, mas nos últimos dez anos não se sabe quantas condenações houve por este crime — os dados da justiça não mostram as ocorrências inferiores a três por uma questão de segredo estatístico, portanto não aparece nenhuma. Em Janeiro deste ano, porém, o Tribunal da Relação do Porto condenou dois indivíduos por este crime, e em 2011 o Tribunal do Fundão condenou três pessoas, naquela que foi considerada na altura a primeira condenação de sempre por escravatura em Portugal. O quadro com os processos e arguidos enviados pelo Ministério da Justiça aparece também praticamente vazio — excepção para 2012, em que houve quatro processos e seis arguidos, e para 2008, quando existiram três.

Já na PJ deram entrada, até final de Novembro deste ano, dez processos relativos ao crime específico de escravatura. Eram 14 em 2012, 15 em 2011, ou 13 em 2008. Em cada processo, pode estar mais do que um tipo de crime, mais do que uma vítima, mais do que um agressor. Sebastião Sousa diz que este é um fenómeno que tem vindo a crescer “porque se trata de um crime que gera lucros muito grandes”. Raros são os casos investigados pela PJ que são arquivados. “Todos os passos relatados por Paulo são os classicamente relatados por todas as vítimas que inquirimos em processos-crime deste tipo de investigação.” Ou seja, corresponde ao padrão de actuação dos criminosos.]

Para mim, aquela pessoa [Manuel Machado] não tem nada, nada, nada de bom, nada mesmo. Nem ele nem o tribunal português. Porque quando fiz a denúncia a Polícia Judiciária levou-o preso. Não sei se teve alguma consequência, mas passado umas horas saiu cá para fora. Saiu como um passarinho, que voa livremente, sem hora de pousar, sem hora de levantar. Pegou nas suas coisas, foi para Espanha. Desde 2009 que tenho recebido cartas e cartas do tribunal. Nós comparecemos e ele nada. Há um bocado estava aqui a escrever: estou agora aqui, mas sei que estão lá pessoas ainda, porque é difícil que uma pessoa, sem escrúpulos, como ele, esteja sozinha, sem empregados nenhuns.

São coisas que queria esquecer mas não dá para esquecer. Não dá porque o próprio sentimento de ódio que sinto é ódio puro mesmo, verdadeiro, não sei, não sei... Porque ele pode aparecer aí a qualquer momento, pode fazer-me mal, pode fazer mal à minha mãe, à minha família, porque ele sabe a minha morada.

Pedi uma indemnização de 50 mil euros. Sei que nunca vou ver esse dinheiro à minha frente, nem um euro sequer. Não pensem que eu quero dinheiro com isto. O que quero é que haja justiça e que ele fique uma boa temporada detido lá dentro. Era o maior gozo que me podia dar.

2013

Trabalho num circo. Sempre gostei muito desta vida de circo. Trabalhei noutro, mas como tinha leões, que detesto, saí. Depois encontrei este grupo que conheci em Matosinhos, fui pedir trabalho há três meses. Gosto do que faço e sinto-me bem com as pessoas com quem trabalho. Sabem cuidar bem de um empregado. Cada espectáculo que faço ganho 20 euros. Se não houver espectáculo, não recebo. Durmo aqui, a patroa fornece-nos a comida. Tenho de limpar o circo, cuidar dos animais, dos cães, dos gatos. Faço os bonecos no espectáculo: saio com o Noddy, com o Mickey… Visto os bonecos e depois ando por ali no meio da pista, ando à volta do público, cumprimento as crianças… No final, vamos todos ao palco — há muitos circos que não fazem isso. São pessoas cinco estrelas.

Fiquei em casa durante dois anos entre o outro trabalho e este. Tirei um curso de primeiros socorros e outro de informática. Ia à biblioteca, ia à Internet, ouvia música. Gosto de tudo, de música italiana, espanhola, francesa. Agora estou a gostar muito das músicas do Roberto Carlos, agora ando a ouvir As baleias, e aquelas músicas indianas que ninguém gosta, com as palmas e instrumentos que eles tocam.

Tenho uma grande paixão que é fotografar aviões, tenho uma paixão que nem imagina! Tenho uma máquina pequenina em casa e de vez em quando vou ao aeroporto. Aquilo é um lugar distante da cidade, se tiver problemas, nunca mais me lembro deles, se tiver um compromisso, esqueço-me. Não quero viajar, espero nunca andar de avião. Tenho medo que o avião caia. Mas a minha grande paixão são os aviões.

Uma vez o Futebol Clube do Porto foi jogar a Dublin, e disseram-me que iam chegar 26 aviões para os ir buscar. Não consegui dormir. Acordei às 3/4h, peguei na minha bicicleta e fui para o aeroporto. Levei a câmara e tive um dia inteiro a fotografar aviões. Gosto sempre de ver os aviões lá em cima, conheço-os ao longe. Trago sempre aviões comigo. Tenho aviões em miniatura que estão na minha cabeceira. É como se fosse um amuleto. Sinto muita protecção ao fotografar aviões. Sou muito feliz a fotografar um avião.”

Leia a primeira parte do trabalho sobre a escravatura em Portugal em publico.pt/portugal/noticia/fui-escravo-em-portugal-durante-26-anos-1616167

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