O que nos disse o Constitucional

Um dos sintomas da pobreza do nosso debate político é a forma como se transforma um acórdão tão importante como aquele que foi divulgado há uma semana numa mera contagem de conselheiras cabeças (13-0) e num reductio ad economicum do seu conteúdo. Que se lixe a argumentação: o que interessa é saber se o Governo ganhou ou perdeu e o que vai fazer para tapar o buraco de 388 milhões que se abriu no orçamento. 

Ora, o acórdão é um texto bastante elaborado, que desta vez não pode, de forma alguma, ser enfiado na cómoda gaveta do lá-estão-aqueles-tipos-do-Palácio-Ratton-a-impedir-o-corte-na-despesa-do-Estado. Se é verdade que nós temos uma Constituição problemática, que torna infinitamente mais fácil o ajustamento pelo lado da receita do que pelo lado da despesa, já que as subidas de impostos parecem nunca ser inconstitucionais, no caso em particular deste acórdão a argumentação utilizada pelo Tribunal Constitucional (TC) toca fundo no meu coração liberal – porque aquilo de que se trata, em última análise, é de impedir que direitos de indivíduos particulares (os pensionistas da Caixa Geral de Aposentações) possam ser diminuídos por interesses mal fundamentados do Estado.

Quem tem a amabilidade de acompanhar esta página certamente se recordará das vezes (foram muitas) em que aqui me ri por apelidarem de neoliberal um Governo que na essência continua a ser profundamente estatista, já que nunca teve coragem para assumir a reforma do Estado e sempre preferiu mexer o menos possível nos interesses instalados. O país está a mudar, é certo, porque o Governo deixou de ser capaz de despejar rios de dinheiro na economia, mas isso deve-se menos a uma vontade do que a uma inevitabilidade: a cada ano, a cada Orçamento do Estado, a cada exigência da troika, o Governo vai freneticamente à procura de pedaços da manta onde enfiar a tesoura, tentando ao mesmo tempo que o país não morra de frio. Mas nesse processo não se vislumbra qualquer plano geral, qualquer rumo definido, que não seja a gestão mais ou menos desesperada do dia-a-dia.  

Isto, que entra pelos olhos dentro, também entra pelos olhos dentro dos juízes-conselheiros. Segundo o acórdão do TC, a convergência das pensões chumba não por ser proibida pela Constituição, mas por não estar devidamente fundamentada. Ou seja, não é a convergência que é inconstitucional – é a má fundamentação da convergência que é inconstitucional. Nas palavras do próprio TC, a forma como a convergência foi desenhada pelo Governo “não pode ser vista como uma medida estrutural”, mas sim como “uma mera medida avulsa de redução de despesa”. E, assim sendo, o que este acórdão faz não é defender a existência eterna de um sistema insustentável, mas sim valorizar os direitos de certos indivíduos em detrimento de uma pretensa igualdade imposta a martelo, desintegrada de uma reforma global do sistema, que o torne mais justo e equilibrado. Para um liberal, é difícil não concordar com isto.

Mas há mais. Mesmo as duas juízas que discordaram desta interpretação (uma nomeada pelo PSD, outra pelo CDS) chumbaram o decreto com outro argumento dificilmente rebatível: 600 euros é um montante imoral para começar a fazer cortes. E é, obviamente. Donde, a decisão do TC parece-me não só razoável e correcta, como uma excelente prenda de Natal para ajudar o Governo a meditar sobre a sua própria incompetência. Esperemos que a aproveite.
 
 

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