Por um Natal sem crises

As coisas mais importantes que temos nas nossas vidas são imunes a ratings e a aberturas de Telejornal. Por uma noite, são tudo aquilo que conta.

Calhando-me, pela primeira vez, escrever no PÚBLICO na véspera de Natal, pensei em deixar para quinta-feira a análise a mais um chumbo do Tribunal Constitucional e compor hoje um texto optimista e esperançoso, que falasse dos aspectos positivos desta crise. Mas estou um pouco hesitante: será que se pode?

Uma das consequências lamentáveis da crise é todo o discurso que a procura superar ser torpedeado pelos vigilantes da sensibilidade alheia, que com toda a facilidade classificam como “insensível” e de “mau gosto” qualquer desvio à narrativa oficial. A saber: nada de bom sai de uma crise, que apenas extrema as desigualdades sociais, empobrece o país e lança pessoas na miséria.

Tudo isto é verdade, mas não é toda a verdade. Só que o resto da verdade, aquele resto que não cabe no habitual muro das lamentações, fica em geral condenado a um território de não-dito. Porquê? Porque é um género de argumentação demasiado exposto à caricatura: se alguém disser que a crise ajuda a desinstalar-nos, a quebrar rotinas, a alterar as nossas prioridades, a dar respostas mais criativas aos problemas, a inovar, a um sentido de urgência, a exigir mais daqueles que nos governam, rapidamente será acusado de desejar a crise, de gostar dela, de nada fazer para a combater. Afinal, se é boa, por que não promovê-la? E mesmo que se diga que não, que não é isso, que a crise não é boa, que não é bom desejá-la nem promovê-la, que simplesmente ela tem aspectos positivos, que há oportunidades que vale a pena aproveitar, que a transformação do mero choradinho em programa político não nos leva a lugar algum; mesmo que se diga tudo isto, tal argumentação será sempre um alvo fácil de anátemas, do género: “Só um perigoso neoliberal sem quaisquer sentimentos poderá vislumbrar algo de bom no sofrimento das pessoas”.

Como sair deste círculo vicioso, em que o queixume é uma inutilidade e a ausência do queixume uma insensibilidade? Como conseguir a suspensão dos tiques argumentativos, dos automatismos na forma de olhar para o mundo, do prazer das trincheiras, do nosso eterno desejo de caricaturar aqueles que pensam de modo diferente de nós? A resposta para estas perguntas não é fácil, sobretudo quando aquilo que está em causa é uma situação de crise aguda. A mera tentativa de promover essa superação através do diálogo e dos consensos é, aliás, frequentemente classificada como ingenuidade – porque a política é como é, e não vale a pena tentar alterá-la. Resultado: estamos emparedados entre a impossibilidade prática de as coisas continuarem assim e a impossibilidade cínica de elas serem de outra maneira.

Mas eu prometi um texto de Natal, e o bom do Natal é ser um tempo de paragem, uma suspensão das rotinas para nos centrarmos nas nossas famílias e nas pessoas que amamos. É como se todos os focos que incidem incansavelmente sobre o intenso burburinho político e mediático de repente se apagassem por uns dias, para dar lugar às pequenas luzes da árvore de Natal. E esse movimento em direcção à intimidade é também um movimento de regresso àquilo que de mais sólido possuímos, e que sentimos como mais necessário e valioso precisamente em alturas de maior sofrimento. Eis algo que só nos pode consolar: as coisas mais importantes que temos nas nossas vidas são imunes a ratings e a aberturas de Telejornal. E, por uma noite, são tudo aquilo que conta. Um feliz Natal para todos.

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