A Constituição explicada às crianças

A história de como, em 1803, o Supremo Tribunal Federal dos EUA exerceu pela primeira vez o controlo judicial da constitucionalidade das leis, reclamando para os juízes o poder inalienável de recusar a aplicação de leis inconstitucionais

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David Clifford

A Constituição é a Lei Fundamental. Por ela se realiza um desígnio extraordinário: a submissão do direito do mais forte à força do direito, segundo uma certa ideia de justiça.

A Constituição reconfigura o passado, descreve o destino comum, conforma o futuro e os processos de mudança social. Mas, acima de tudo, impõe limites rigorosos ao poder dos que governam em nome do povo que representam, determina as regras do jogo político, facilita a alternância, limita a acumulação de mandatos sucessivos, regula, enfim, o exercício da representação democrática.

Por isso, a Lei Fundamental não é uma lei como as outras. Pelo contrário: é a Constituição que regula os procedimentos a seguir para a aprovação de todas as outras leis, que determina as formas que elas devem revestir consoante as matérias de que tratam, que identifica os órgãos soberanos competentes para as fazer e para as aprovar, para ordenar a sua publicação, para assegurar o seu cumprimento e, por fim, para punir a sua violação.

É bom de ver que seriam escusadas tantas canseiras se o mesmo órgão competente para fazer as outras leis pudesse, sem mais cautelas, mudar também a própria Lei Fundamental quando lhe aprouvesse.

Questão distinta, contudo, é a de saber o que deve ser feito se uma lei violar a Constituição. Poderão os juízes, cuja missão é justamente assegurar o cumprimento das leis, recusar a aplicação de uma norma legal se entenderem que ela não respeita a Lei Fundamental? Mas se a sua missão é justamente aplicar a lei, como se poderá negar-lhes competência para assegurar que a lei superior prevaleça sobre a lei inferior?

A Europa não vai encontrar resposta para este paradoxo até à primeira metade do século XX. Bem pelo contrário, nos Estados Unidos da América o problema ficou definitivamente resolvido nos princípios do século XIX, não muitos anos após a Declaração da Independência e a vitória na guerra contra a opressão colonial britânica. Curiosamente, o texto da Constituição aprovada pela Convenção de Filadélfia, em 1787, é completamente omisso quanto a esta questão, ainda que o assunto ali tenha sido abordado pelos deputados constituintes.

Contudo, logo em 1803, o Supremo Tribunal Federal dos EUA, na decisão de um caso que apenas por esse motivo iria aceder à celebridade – Marbury versus Madison – vai exercer pela primeira vez o controlo judicial da constitucionalidade das leis, reclamando para os juízes o poder inalienável de recusar a aplicação de leis inconstitucionais.

Foi relator da sentença o Presidente do Supremo, John Marshall, que assim enunciou “o paradoxo”: “Com que finalidade se limitou o poder e com que finalidade foi tal limitação reduzida a escrito, se tais limites puderem ser ultrapassados, em qualquer altura, por aqueles que se pretendia limitar?”

Nos últimos dias do seu mandato como segundo Presidente dos EUA, John Adams nomeou 42 juízes para os tribunais distritais de Columbia. Era uma derradeira tentativa do Partido Federalista de condicionamento do poder judicial.

Para azar do Presidente cessante, o Senado atrasou a confirmação dos juízes nomeados, que só ficaria concluída na véspera do início de funções do seu sucessor. O resultado foi que os documentos de nomeação não chegaram a sair da Presidência e o novo Presidente, Thomas Jefferson, iria considera-las inválidas.

Porém, Marbury – um dos juízes nomeados – não se resignou e requereu ao Supremo Tribunal que emitisse uma intimação (Writ of Mandamus) para obrigar o Secretário de Estado, James Madison, a concluir o processo de nomeação. O Tribunal iria, contudo, declarar-se incompetente, com fundamento em que a norma legal que o habilitava a decidir o caso em 1ª instância violava a distribuição de competências entre o Supremo Tribunal e os tribunais inferiores, tal como previa a secção II do artigo 3º da Constituição dos EUA.

É verdade que esta interpretação da norma constitucional invocada como fundamento da decisão não iria vingar. Em contrapartida, a argumentação acessória produzida por John Marshall a favor do reconhecimento da competência dos juízes para fiscalizar a constitucionalidade das leis iria prevalecer para sempre e havia de conquistar o mundo...

Entretanto, a coberto da exaltação retórica da supremacia judicial – que lhe permitiu recusar a aplicação da lei que, precisamente, lhe atribuía competência naquela matéria! – tinha sido evitada uma “guerra” de resultado incerto entre os juízes e o chefe do poder executivo.

O poder judicial é, com efeito, o supremo guardião da Lei Fundamental. Não por estar acima do poder executivo ou da representação democrática, mas apenas porque só ele está em condições de satisfazer uma exigência de “neutralização política” indispensável ao funcionamento do sistema e sua “válvula de segurança”.

O poder judicial é esse poder “de certa forma nulo, inexistente” de que falava Montesquieu no Espírito das Leis. Mas a independência dos juízes – a garantia de um decisor último, isento e imparcial – tornou-se o elemento mais perene e universal do “princípio da separação dos poderes”, já reconhecido na Revolução francesa, a par com a garantia dos direitos humanos, como expressão da própria substância da ideia de Constituição.

Só a partir do fim da II Guerra Mundial, o controlo judicial da constitucionalidade das leis iria começar a implantar-se na Europa, seguindo o modelo recomendado nos anos 1920 por um notável filósofo austríaco, Hans Kelsen, que, perseguido pelos nazis, iria mais tarde procurar refúgio nos Estados Unidos. No modelo de controlo judicial da constitucionalidade que preconiza, e ao contrário do modelo americano, destaca-se a criação de um tribunal com a função específica de exercer o controlo da constitucionalidade, a possibilidade da realização da fiscalização preventiva e a competência para a declaração de inconstitucionalidade de quaisquer normas, com força obrigatória geral. O Tribunal Constitucional português é o vértice de um sistema de controlo judicial que combina elementos destes dois sistemas históricos.

Mais interessante que o sentido da deliberação do Tribunal Constitucional sobre a “convergência de regimes” – coincidente com a opinião mais comum entre os constitucionalistas e inscrito numa orientação coerente da sua própria jurisprudência – é a circunstância da deliberação ter sido tomada pela unanimidade dos seus juízes, que assim responderam a todas as pressões e tentativas de instrumentalização, reafirmando a sua independência e credibilidade.

Não haja a menor dúvida: o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu nunca se teriam permitido tanta especulação sobre decisões hipotéticas do Tribunal Constitucional de um Estado soberano se para isso não tivessem sido induzidos pelo comportamento do Governo. Uma governação que, sistematicamente, procurou desvalorizar a Lei Fundamental e a tentou apresentar como o principal obstáculo às políticas da maioria parlamentar que a suporta e, por fim, como justificação expedita para os seus insucessos.

O debate público, o confronto de pontos de vista divergentes, de propostas, de soluções e alternativas para a crise que enfrentamos, são os procedimentos habituais numa democracia pluralista. O que não é desejável nem sequer normal é que a polémica sobre a Constituição tenha ocupado o lugar da discussão das alternativas políticas e que as opções governativas da atual maioria parlamentar se tentem furtar ao contraditório, desafiando o consenso constitucional em que o regime democrático se fundou e evoluiu até aos dias de hoje.

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