Afinal, há uma lista dos que Bergoglio salvou da ditadura

Às vezes, o silêncio perante acusações não é sinal de culpa. Foi o que descobriu Nello Scavo, jornalista italiano e autor de um livro sobre as pessoas que o Papa escondeu e tirou da Argentina no tempo dos generais.

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O argentino foi eleito Papa em Março Max Rossi/Reuters

Alfredo Somoza, hoje um jornalista de 55 anos, então “um rapazinho”, nem percebeu que tinha sido ajudado e estranhou quando, já no Brasil, começou a ser contactado por muitas pessoas ligadas aos Jesuítas, preocupadas com a sua situação. Ana e Sergio Gobulin não queriam deixar a Argentina e o seu trabalho social nas favelas; foi o padre que os casara que os convenceu: “É o tempo da coragem. Aqui, as dificuldades nunca acabarão, nem para vós nem para a Argentina. Irão procurar-vos novamente. Ouvi-me. Deixai o país.”

As histórias sucedem-se, os nomes são muitos. São as histórias dos que Jorge Bergoglio ajudou a manter fora da prisão (ou conseguiu tirar de lá) no tempo dos generais (1976-1983), Bergoglio tinha pouco mais de 30 anos e ainda não ocupava qualquer cargo na hierarquia da Igreja argentina. Era provincial dos Jesuítas.

O que Nello Scavo, autor do livro A Lista de Bergoglio – Os que foram salvos por Francisco (Paulinas Editora), estranhou foram as reticências que todas estas pessoas pareciam ter em relatar as suas experiências e, acima de tudo, o papel de Bergoglio nas suas fugas para evitar os calaboiços e a tortura, a morte confirmada ou a sorte de desaparecidos – serão 30 mil os desaparecidos desta ditadura.

“Fiquei desconfiado, pensei que se eles não defendiam Bergoglio talvez ele tivesse mesmo algo a esconder, talvez tivesse sido conivente com a ditadura. Mas não, faziam-no apenas em respeito pelo silêncio que Bergoglio pedira e mantivera. Ele salvou tantas pessoas, mas não conseguiu salvar todas. Sentirá culpa por não ter conseguido salvar mais”, diz Scavo, repórter do jornal dos bispos italianos, o Avvenire, que falou com o PÚBLICO em Lisboa.

Scavo não falou com o Papa. Francesca Ambrogetti e Sergio Rubin sim, mas antes de Bergoglio chegar a Roma, numa série de entrevistas que lhe fizeram ao longo dos anos 2000. Papa Francisco – Conversas com Jorge Bergoglio, a única biografia do argentino que estava nas livrarias em Março (igualmente publicado em Portugal pela Paulinas Editora e pelo PÚBLICO), é um dos poucos onde a questão das acusações de cumplicidade com a ditadura tinha sido aflorada até agora. Aos dois autores, Bergoglio explica que decidira nunca falar, “que encontrara a paz no silêncio” e que não quis “fazer o jogo de ninguém”.

O silêncio, diz Scavo, também é jesuíta. “Eles acreditam que o que fazem pelos outros interessa muito mais do que eles próprios.” E há a disciplina. “Ele esteve nisto como um jesuíta. A formação cultural e espiritual jesuíta, a sua psicologia, assenta numa grande liberdade e independência e num grande sentido de disciplina, de obediência. Ele levava os rapazes para o Colégio Máximo [o instituto dos Jesuítas em Buenos Aires] e dizia que iam em retiro, muitos certamente desconfiaram, mas não questionaram”, afirma o jornalista.

Muito mais do que outras ordens, onde houve colaboracionismo e rebeldia, os Jesuítas, de forma compacta, mantiveram o silêncio durante 40 anos. Depois, Bergoglio foi eleito Papa e acusado de ter denunciado e ajudado a prender dois jovens padres jesuítas, Orlando Yorio e Francisco Jalics. Respondeu como sempre, com silêncio. “Os jornalistas pensam que se alguém está acusado deve responder. Os homens de fé têm outras regras de vida. Mesmo quando foi ouvido pela justiça, Bergoglio não aprofundou as histórias dos que salvou”, diz Scavo.

Quantas pessoas é que Bergoglio, Francisco e Papa desde Março, salvou? É difícil saber. Scavo calcula que serão pelo menos de 100. Mas diz que se considerarmos os salvos directa e indirectamente, incluindo os que não foram denunciados por causa dos que ele manteve fora da prisão, “estamos a falar de números altíssimos”.

É preciso investigar

Este livro nasce quando "nasce" o novo Papa Francisco, 13 de Março. “Na noite da eleição, escrevi um pouco sobre ele. Fiz uma biografia normal. Algumas horas mais tarde, apareceram na Internet as acusações sobre a cumplicidade de Bergoglio durante a ditadura”, recorda. “Ainda nessa noite li tudo o que pude, encontrei suspeitas, mas nada de concreto, e interroguei-me como é que os cardeais poderiam ter escolhido uma figura ambígua.” Já na manhã seguinte, “convencido de que era necessário investigar mais”, propôs ao director do seu jornal avançar ele com essa investigação.

Scavo voou para Buenos Aires, mas acabou por encontrar gente espalhada pelo mundo, incluindo quase à porta de casa. O jornalista Alfredo Somoza vive em Milão, perto da redacção do Avvenire. A certa altura, percebeu que o livro ia afinal ser sobre os que Bergoglio tinha ajudado a escapar. Pensou logo na palavra “lista”, sem saber se os casos chegariam para que a pudesse usar. “Até que as vozes se foram multiplicando.” O livro, traduzido em 40 países, teve o seu impacto e a lista não pára de crescer.

Tanto o Osservatore Romano, diário do Vaticano, como o suplemento literário do jornal Corriere della Sera consideraram que Scavo fez uma investigação rigorosa. -É, aliás, essa a marca do seu trabalho jornalístico. Scavo já fez reportagem de guerra e muita investigação sobre crime organizado e terrorismo.

A esmagadora maioria dos relatos são inéditos, mas há uma história que já conhecíamos, a da magistrada e activista Alicia Oliveira, amiga de Bergoglio. Sabia-se já que o padre lhe sugerira ir viver para o Colégio Máximo, temendo pela sua vida, mas Scavo descreve como Bergoglio correu grandes riscos para que Oliveira pudesse ver os filhos enquanto esteve escondida. O processo envolvia “uma passagem secreta, um corredor que só alguns conheciam” e que permitia a Oliveira encontrar-se com os filhos no Colégio Máximo.

“Não eram visitas isentas de riscos. O padre Jorge ia levá-la de carro ao lugar combinado. Ele guiava muito bem. Talvez rezasse entre uma curva e a seguinte. Entretanto, trabalhava prudentemente com o acelerador”, escreve Scavo. Duas vezes por semana, durante dois meses. “O suficiente para que Alicia Oliveira já não tivesse dúvidas quando se interrogava de que lado estaria o Criador.”

Uma actividade sistemática

Somoza, que não é crente nem baptizado, era um rapaz de boas famílias, morava num bairro burguês e estudava Literatura na Universidade del Salvador, dos Jesuítas. Da universidade diz que era “o único lugar de Buenos Aires onde se respirava liberdade”. Foi sequestrado aos 20 anos e passou uma semana numa esquadra. Logo depois começou a publicar uma revista literária, rapidamente considerada parte da imprensa subversiva.

Quando foi convidado a apresentar-se numa representação governamental, Somoza percebeu que tinha de fugir. Escondeu-se, partiu para o Uruguai e daí para o Brasil. “Quando cheguei a São Paulo, aconteceu uma coisa muito estranha. Parecia que todos andavam à minha procura”, contou a Scava. Depois, percebeu que tinha sido preparado para ele “um caminho de fuga clandestina, com a cumplicidade de funcionários de uma companhia de armadores italianos que, havia algum tempo, escondiam nos seus cargueiros as pessoas que era preciso pôr a salvo na Europa”.

O relato de Somoza, outros que ouviu e as investigações que fez permitem a Scavo falar de uma actividade sistemática e de uma rede de cumplicidades montada no Brasil e gerida por Bergolgio e por outros na Igreja argentina.

Perguntar e olhar à volta

Ana e Sergio Gobulin contam como Bergoglio ia sozinho às favelas onde eles viviam e trabalhavam, mesmo de noite, celebrar missa, saber dos que mais precisavam. Há 30 anos que vivem em Itália e foram salvos por Bergoglio. Naqueles anos de “negação absoluta de todas as liberdades”, como diz Sergio, e onde quem trabalhasse com os pobres era necessariamente um perigoso subversivo ou um terrorista, Sergio foi preso e Ana ficou em perigo.

“Logo que foi informado, o padre Jorge fez desencadear uma operação de salvamento em duas direcções: arrancar Sergio aos militares e pôr Ana em segurança. Como de costume, começou a investigar por conta própria. Perguntando no lugar e olhando à sua volta. Foi falar com alguns oficiais para defender a causa dos seus amigos e, depois das peripécias habituais, conseguiu tirar Sergio”, conta Scavo. A seguir, teve de os convencer a deixar o país. Em 1978, seis meses depois da fuga, foi ter com a mãe de Sergio e deu-lhe um envelope com dinheiro: “vá visitar o seu filho”, disse-lhe.

Debaixo da sua casa

Uma das descrições recorrentes que aponta para a existência de muitas histórias por contar são os jantares de despedida que Bergoglio organizava sempre que alguém se preparara para dar o salto. Aconteciam na Igreja de Santo Inácio. "Eu ia com frequência aos domingos à casa de exercícios de Santo Inácio e lembro-me que muitas das refeições eram para fazer a despedida de pessoas que o padre Jorge tirava do país”, conta Oliveira.

“Ele correu riscos muito altos”, diz Scavo. Da Igreja de Santo Inácio até à Praça de Maio, estima o jornalista, são uns 250 metros. Ora na praça fica a Casa Rosada, onde vivia e trabalhava o ditador da Argentina, general Videla. “A arrogância do poder é tal que não lhe passou pela cabeça que estes dissidentes pudessem estar hospedados debaixo da sua casa.”

Scavo não conhece Francisco, nunca falou com ele nem tentou fazê-lo. Mas sabe como foi importante para estas pessoas que o agora Papa ajudou verem-no escolhido como líder da Igreja Católica. “Muitos choraram. Algumas destas pessoas, até à eleição de Bergoglio, viveram com um sentimento de culpa pelos que conheciam e não foram salvos. A eleição dele deu um certo sentido a tudo o que passaram, é uma espécie de encerramento de um percurso, isso dizem até os não-crentes.”

Alguns jornalistas argentinos perguntam a Scavo como é que ele fez para encontrar tantos relatos em poucos meses, para contar uma história que estava por contar. O jornalista italiano diz que os argentinos só não contaram esta história porque não quiseram, estavam “totalmente presos na luta política e queriam encontrar a culpa”, não a absolvição.

Depois de tudo o que aprendeu sobre Bergoglio, Scavo é um dos muitos com as expectativas bem altas em relação ao seu pontificado. “Ele é forte e astuto, fez isto tudo quando ainda não tinha 40 anos, não será fácil derrubá-lo”, diz com convicção.

“Um dos limites deste livro é não ter entrado em profundidade na espiritualidade de Bergoglio, ele tem uma fé incrível. Saía de noite do colégio para rezar e telefonar de cabines para não ser interceptado pela polícia. A fé foi a gasolina que lhe permitiu enfrentar estes riscos. Isto que ele fez não durou meses, durou anos, e isso não se faz sem uma força interior muito, muito forte, é isso que ainda o move. Sem essa espiritualidade não haveria Bergoglio nem esta gente que ele salvou.”
 
 
 

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