A última porta

Lembro-me perfeitamente de subir a Rua da Boavista em direcção ao mítico Bairro da Bouça, no Porto. Foi a semana passada.

Cheguei ao Porto há muitos anos. Nunca pensei sair daqui como não pensei chegar cá. Fui chegando; fui saindo.

Cada dia que passa admiro mais o sotaque que me parece cada vez mais distinto, como se houvesse uma conspiração para me seduzir. Primeiro era a admirável Estação de S. Bento, e o comboio que me levava pelo Rio Douro; agora parto da tétrica estação de Gaia, um ponto a favor dos que não acreditam no progresso.
Agora com as malas feitas, vejo como todos os lugares-comuns sobre o Porto são verdadeiros, e neles quase consegui tocar; particularmente, a honestidade dura mas elegante que se ouve em Sobrinho Simões, Daniel Bessa, Alexandre Quintanilha, Alexandre Alves Costa.

Mesmo com estas veleidades, no Porto confundem-me com um futebolista famoso e agradecem-me na rua; o que sendo o Porto uma cidade do futebol é lisonjeiro, embora não me calhe muito bem. Tirei pouco partido dessa parecença.

Vi o edifício da Faculdade de Arquitectura crescer, do jardim da escola, enquanto estudante; e a Casa da Música, do atelier na rua 15 de Novembro, enquanto arquitecto. Serralves é a Piscina das Marés do nosso tempo; o Metro do Porto é a Avenida da Boavista do século XXI. Da Casa das Artes, de Eduardo Souto de Moura, até à Casa da Música, de Rem Koolhaas, podemos resumir a arquitectura contemporânea: a pedra que faz a terra; o “meteorito” que cai do céu. Os extremos tocam-se, é claro.

São 30 anos que significam muito tempo, o século XX acelerado e compactado.
Há 30 anos não havia turistas no Porto, nem gente de cor, nem pessoas no Café Ceuta, que era demasiado grande para o nosso pequeno grupo e cuja redenção parecia impossível. Mas as cidades mudam, às vezes imprevistamente.

Lembro-me então perfeitamente de subir a Rua da Boavista e de pensar como era inesquecível subir a Rua da Boavista; em direcção à Bouça, um monumento funcional da arquitectura e da história portuguesa pós-25 de Abril. A Bouça é um siedlungen contextualista, cruzando experiências heróicas dos anos 1920 com o desejo reformista de “fazer cidade” dos anos 1970, a partir da mão que desenha. Como se fosse possível. Será Álvaro Siza o último moderno ou o primeiro pós-moderno? Não me interessa que esteja no meio.

Por um momento esqueci o gosto do Porto em deixar de fora os que são de fora. Estou na Bouça.
Atravesso o pátio-jardim e entro na última porta, na Circo de Ideias, onde a Joana Couceiro e o Pedro Baía me recebem, “jovens” arquitectos, alunos e amigos, com um trabalho notável. A conversa é boa; as gerações fluem; é tempo de ir embora. A honestidade dura e elegante.
Saio pela última porta, para o Porto dentro de mim mesmo.

Esta crónica foi publicada na Revista 2, edição de 22 de Dezembro de 2013

 


 

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