Um educador de pares exemplar

Fez parte de um projecto pioneiro, que pretendeu introduzir um novo perfil profissional nas equipas de redução de riscos. Dizia aos outros toxicodependentes: “Eu sou um gajo como tu, eu sei onde podes ir”

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Adriano Miranda

Uma vez, sentamo-nos na estação de São Bento a ver entrar e sair gente, chegar e partir comboios.

 

Falámos uma, duas, três, quatro horas. Ele gostava de falar. São Bento era o seu território. Havia mais de sete anos, desembarcara sem ter onde passar dias nem noites. “Estacionar é vergonha, roubar não sei, pedir muito menos.” Entendeu-se com uma mulher que prestava serviços sexuais na Rua do Loureiro — depois com outra, com outra, com outra, com outra, com outra, com outra.

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Adriano Miranda

 

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Ana Cristina Pereira é jornalista do PÚBLICO

Falava de tudo, até de coisas que eu preferia não saber. Nada lhe agradava tanto como falar no seu trabalho.

 

A cooperativa ARRIMO é que o desafiou a fazer o curso de Gestão de Associações de Utilizadores de Drogas e Trabalhadores Sexuais, na Agência Piaget para o Desenvolvimento. “Disseram-me que eu, sem saber, já era educador de pares. Andava com pratas, seringas, cachimbos para dar às pessoas que não tinham, para não terem de apanhar no chão, de partilhar.”

 

Teria um quarto na Casa da Rua da Santa Casa da Misericórdia do Porto, três refeições por dia, metadona na dose certa para exterminar a ressaca de heroína. Nas aulas, descobriu a vocação. Entrou na equipa de rua do Espaço Pessoa —Centro de Encontro e Apoio a Prostitutas e Prostitutos da Cidade do Porto. Dizia aos toxicodependentes: “Eu sou um gajo como tu, eu sei onde podes ir.”

 

Gostava de se pôr no lugar dos outros, embora nem sempre conseguisse. “Não sou perfeito. Tomara eu ser perfeito! Eu, às vezes, disparo. Não tenho tempo de pensar duas vezes, só penso uma e mal, mas tenho a bondade de reflectir, de pedir desculpa, de explicar que foram os nervos.”

 

Ainda consumia cocaína quando o conheci, em Março. “Eu, para me salvar, tinha de deixar este ambiente. Não posso! Isto é como o ar que eu respiro! Se não fizer isso, perco a razão de viver. Preciso destas pessoas, que são iguais a mim. Embora eu esteja mais estabilizado, não sou mais do que elas.”

 

Acontecia haver chatice, mesmo ali, na Casa da Rua, onde continuava a morar: “A gente está a discutir qualquer coisa e quando há alguma coisa que eu não gosto eu digo logo. Todos dizem: 'Este tem a mania que sabe tudo'. De sem-abrigo, toxicodependentes, alcoólicos, trabalhadores sexuais, portadores de HIV, sou obrigado a saber mais! Vem muita gente falar comigo! Não é por eu ser o Brad Pitt!”

 

Nasceu no mesmo ano que o Brad Pitt. Assumia-se como toxicodependente e sem-abrigo. Nome de guerra: Mony. Nome profissional: Educador de Pares Santos. Para mim, era o Victor. Naquele dia, na estação de São Bento, a ver entrar e sair gente, chegar e partir comboios, disse-me: “A minha luta é ajudar as pessoas. A gente não tem direito de julgar.” A polícia encontrou-o na rua, morto, segunda-feira à noite. 

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