A burocracia prejudica a ciência

Infelizmente há uma tendência secular em Portugal para agirmos e para nos comportarmos para “inglês ver”, agora substituído pelo “Bruxelas ver”.

Senhor primeiro-ministro, nós sabemos que por razões insuficientemente esclarecidas e nebulosas, dada a ausência de responsabilidades atribuídas, o país mergulhou numa crise profunda e que todos, em todos os sectores, vamos continuar a sentir a sua gravidade e o peso das suas consequências.

Senhor primeiro-ministro, nós sabemos que por razões insuficientemente esclarecidas e nebulosas, dada a ausência de responsabilidades atribuídas, o país mergulhou numa crise profunda e que todos, em todos os sectores, vamos continuar a sentir a sua gravidade e o peso das suas consequências.

Sabemos que estamos, e continuaremos a estar durante vários anos, numa situação de emergência nacional, sempre à beira da bancarrota. Mas há que distinguir entre o valor absoluto dos cortes orçamentais e o impacto actual e futuro desses cortes.

Há sectores em que cortar no Orçamento do Estado mais umas dezenas de milhões de euros tem consequências graves para o futuro do país a médio e longo prazo. Em outros sectores não é assim. Há sectores em que tais cortes conduzem à perda de competitividade económica e à emigração de profissionais portugueses com excelente currículo em engenharia, ciência, tecnologia, inovação e também nos vários domínios da cultura e da arte.

A mobilidade e a internacionalização são indispensáveis para os referidos profissionais, mas criar condições que propiciam o êxodo forçado dos mais diferenciados, e daqueles em quem o país mais gastou na sua formação, é revelador da incapacidade dos nossos governantes em criar um projecto mobilizador para Portugal.

O sector da ciência e do ensino superior constituem um exemplo de uma política desnecessariamente destrutiva. Para além dos cortes orçamentais, aqueles sectores são confrontados com um conjunto de limitações à autonomia universitária que dificultam a capacidade de as universidades e as suas unidades de investigação procurarem receitas alternativas ao Orçamento do Estado.

Será isto compreensível? O aumento da burocracia nos sectores do ensino superior e da investigação tutelados pelo Estado é verdadeiramente surpreendente e está a consumir um tempo precioso aos professores e investigadores, que o deveriam utilizar a fazer aquilo que sabem fazer, ou seja, ensinar e investigar, e a procurar fontes alternativas de financiamento.

Numa intervenção recente, em 28 de Novembro, na Academia das Ciências de Lisboa, o professor Miguel Seabra, presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), que tutela a investigação científica e o desenvolvimento tecnológico em Portugal, referiu e insistiu em que o nosso país não é competitivo relativamente aos outros países da União Europeia (UE) nos indicadores de produção científica. Já sabíamos isso, senhor professor! O que é agora necessário é saber como melhoramos a nossa situação. Mas, com o aumento da burocracia que a FCT impõe aos investigadores, é muito improvável que aquele nível melhore.

Actualmente, os investigadores que dependem em grande parte da FCT para a sua actividade de investigação estão submersos em actividades burocráticas. A falta de qualidade das variadíssimas plataformas informáticas que a FCT obriga a utilizar é impressionante. É rara a situação em que estas plataformas funcionam como a FCT diz que deveriam funcionar.

As correcções, os adiamentos, os contratempos e a ineficiência dos processos liderados pela FCT não são competitivos no seio da UE. Não está de modo nenhum em causa o empenhamento e a dedicação de muitas das pessoas que trabalham na FCT, cujo desempenho conheço pessoalmente há muitos anos. O que está em causa é o modelo de gestão, a burocracia excessiva e a inadequação dos procedimentos face à realidade do que é a gestão da investigação científica em países que são competitivos em termos dos indicadores de produção científica.

Darei apenas um exemplo. De acordo com o website da instituição, “a FCT vai proceder à avaliação das unidades de investigação científica e de desenvolvimento tecnológico, com o objectivo de reforçar o papel das unidades de I&D como um pilar fundamental na consolidação de um sistema de I&D moderno e competitivo”. Este concurso é obviamente crucial para todos os investigadores das actuais unidades de I&D, tanto mais que se espera que um número significativo de propostas seja rejeitado, devido, em grande parte, aos cortes orçamentais.

Ainda de acordo com o aviso de abertura do concurso, datado de 9 de Julho deste ano, “o formulário para submissão das candidaturas à avaliação está disponível a partir do dia 19 de Agosto, e, após a conclusão do processo de registo da unidade, deve ser lacrado até às 17 horas (hora de Lisboa) do dia 31 de Outubro de 2013”. Os investigadores portugueses lançaram mãos à obra em Julho, mas a 26 de Agosto a FCT avisou-os que a data limite de submissão das propostas fora adiada para 18 de Novembro. A 18 de Outubro foram novamente avisados que a data limite evoluiu para 2 de Dezembro. A 26 de Novembro a FCT empurrou a tal data para 16 de Dezembro e a 13 de Dezembro fê-la migrar de novo para 30 de Dezembro!

Claro que a direcção da FCT dirá que todos os adiamentos foram solicitados com grande veemência por algumas unidades de I&D. Mas a questão não é essa. A questão é o desajustamento entre um processo crucial, mas pouco amadurecido e altamente controverso, e a realidade do quotidiano da maioria dos investigadores confrontados com crescentes dificuldades de realização profissional no nosso país. A questão é que quatro adiamentos sucessivos, em quatro meses e 18 dias, revelam um sistema disfuncional e sem grandes hipóteses de ser “moderno e competitivo” na UE.

Será razoável fazer uma reorganização profunda do sistema científico e tecnológico financiado pelo Estado numa situação de penúria financeira e de grande incerteza quanto ao futuro? Não seria preferível consolidar através de uma avaliação o que, apesar de todas as dificuldades, continua a funcionar e fazer os ajustamentos claramente necessários?

A reorganização das unidades de I&D está a consumir a todos os investigadores um tempo desmesurado face aos eventuais benefícios que essa reorganização possa porventura trazer a alguns investigadores e ao país. A importância da FCT e das suas reformas não se mede pelo tempo que nos gasta, mas sim pela simplificação burocrática que for capaz de introduzir para nos deixar mais tempo para reflectir, observar e experimentar. Sem este tempo suplementar, a competitividade da investigação em Portugal no contexto da UE não irá melhorar.

Imagine, senhor professor, a vantagem que adviria para o nosso país, em termos de competitividade, se apenas uma parte do tempo consumido nas intermináveis burocracias de gestão de projectos de investigação e de submissão de propostas a todos os tipos de concursos da FCT, cuja taxa de sucesso é em geral baixíssima, fosse gasto a preparar propostas aos programas de financiamento da investigação da UE e em especial do Horizonte 2020.

Uma das tarefas mais importantes dos investigadores portugueses é estabelecer parcerias com outros grupos de investigação por essa Europa fora para formar consórcios que tenham alguma probabilidade de ser financiados nos concursos da UE, em particular o Horizonte 2020. Para os que são professores além de investigadores, onde está o tempo para dar aulas, fazer exames, atender à crescente burocracia académica, atender à crescente burocracia da FCT, fazer investigação de qualidade excelente e concorrer ao Horizonte 2020?

Infelizmente há uma tendência secular em Portugal para agirmos e para nos comportarmos para “inglês ver”, agora substituído pelo “Bruxelas ver”. Esta tendência manifesta-se nos mais variados sectores da actividade nacional e também, como não podia deixar de ser, na ciência e na tecnologia. Revela uma surpreendente falta de confiança própria num país com mais de oito séculos e meio de nacionalidade.

Tanto agora como no passado recente, o grande e aparentemente único objectivo da FCT é a excelência da investigação científica. É praticamente impossível encontrar alguém discordante de que devemos procurar fazer em Portugal investigação de qualidade excelente, daquela que é publicável na Science e na Nature, para dar um exemplo concreto.

Mas será este o único objectivo da ciência em Portugal? Será que apresentar excelentes índices bibliométricos de publicações científicas em Bruxelas e na OCDE deve ser o principal objectivo da actividade científica em Portugal? E a contribuição da ciência e da tecnologia, feita em Portugal, para potenciar o seu desenvolvimento social e económico, para aumentar a competitividade e a capacidade de exportação, para usar a linguagem em vigor no momento actual?

Sabemos que os países mais industrializados, mais desenvolvidos e com melhor qualidade de vida investem muito em ciência e tecnologia. A principal razão desse investimento é defender os interesses nacionais e a competitividade económica a nível internacional. Uma parte importante desse investimento faz-se para conhecer e monitorizar o território, os recursos naturais e o ambiente. Sem essas actividades não é possível ter políticas de gestão de recursos naturais e de ambiente adequadas.

É evidente que os processos de conhecimento, avaliação e monitorização do território, dos recursos naturais e do ambiente não constituem o caminho mais curto para publicar na Science ou na Nature. Em Portugal tem-se por vezes a sensação de que ainda estamos a tentar provar ao mundo que somos capazes de escrever muitos artigos por ano e per capita (5, 10, 20 ou mais) em revistas com sistema de arbitragem científica de grande impacto. Claro que somos!

Nos países mais industrializados a ciência e a tecnologia servem sobretudo para ajudar a construir e a validar as políticas públicas nos mais diversos sectores. Em Portugal avaliou-se alguma vez de forma sistemática e quantificada os benefícios que o investimento do Estado em ciência e tecnologia trouxe efectivamente para as políticas públicas? Qual tem sido a evolução do retorno para a sociedade deste tipo de investimento? Neste ponto é muito importante salientar que o retorno da investigação aplicada é mais directo, tangível e quantificável do que o da investigação fundamental, embora esta seja também imprescindível.

O forte investimento em ciência e tecnologia nas duas últimas décadas conseguiu superar grande parte do atraso científico e tecnológico de Portugal. Porém, não basta dizer de forma genérica que este avanço é essencial para promover o desenvolvimento social e económico, melhorar a qualidade de vida e tornar o país mais competitivo internacionalmente. É necessário prová-lo de forma quantitativa e iniludível, apresentando e analisando detalhadamente os casos concretos de sucesso.  

Voltemos à questão do projecto mobilizador para o nosso país. Estou certo de que os nossos governantes têm uma visão para o futuro de Portugal e que provavelmente foi ela que os motivou a assumir o pesado encargo da governação numa situação particularmente difícil. O enigma está em saber qual é essa visão que prevalece no Conselho de Ministros e que aparentemente passa por desinvestir fortemente no ensino superior e na ciência e tecnologia, deixando as universidades à beira da ruptura financeira e forçando uma parte significativa dos melhores investigadores que o país formou a emigrar.

É urgente que nos expliquem o que se passa. É urgente que gastem algum tempo a racionalizar perante todos nós, portugueses, qual a visão mobilizadora que têm para o futuro de Portugal.

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