Enfrentar a morte

Andreia Sanches é jornalista (no PÚBLICO) e Os Anjos Não Comem Chocolate é o resultado de um longo, complexo e duro trabalho de pesquisa num território violentamente cruel: o processo do luto de pais e mães que perderam filhos e filhas. É, por isso, um relato difícil de seguir; no entanto, graças à delicadeza da autora, o livro é intensamente fascinante (Sanches não é moralista nem emite juízos de valor) e poderosamente didáctico: saber lidar com a morte é, afinal, tão importante como saber lidar com a vida.

No Verão de 2012, Andreia entrou em contacto com Emília Agostinho, presidente de A Nossa Âncora, uma associação que dá apoio e conselho a quem necessita, nestas dramáticas circunstâncias. Emília Agostinho perdeu o marido e o filho de sete anos no mesmo dia, a 26 de Janeiro de 1987, num acidente: um camião, em Alcântara, Lisboa, perdeu os travões e foi esmagar o carro onde seguiam. Na sequência deste acontecimento traumático, percorreu um longo caminho de dor e de solidão até encontrar refúgio na referida associação, fundada por uma outra Emília que também perdeu a filha, Mónica, e decidiu, depois de percorrer a Europa e de visitar centros semelhantes, reunir à sua volta gente desamparada, desesperada, prestes a desistir da vida. Algumas das histórias dessas pessoas, que conseguiram dar um passo no árduo caminho de volta à vida, indo ao encontro dos seus semelhantes para partilhar experiências, estão aqui, neste livro.

Perder um filho ou uma filha — há o caso de um casal que perdeu um filho e uma filha — é algo inimaginável. As experiências são individuais e especiais, todas diferentes e todas iguais num ponto: o choque tremendo de uma perda que não faz qualquer sentido (ao fim e ao cabo, pela ordem natural das coisas, os pais morrem antes dos filhos). Através da voz das pessoas entrevistadas, Andreia Sanches relata diversas reacções, variadas escolhas e ímpetos: há quem se agarre a tudo, incluindo médiuns, videntes, bruxos; há quem passe a amar mais e melhor e há quem se feche para sempre; há quem se decida a agir, a fazer algo de útil pelos outros e há quem se enclausure por completo numa carapaça de isolamento e de silêncio; há quem se vire para a religião e há quem deixe de ter fé; há quem “congele” no momento da tragédia e há quem tente esquecer; há quem se revolte e há quem se conforme. E há quem passe por todas estas fases, com desfechos que tanto podem ser positivos como negativos. Em comum existe a certeza de que o “tempo não cura tudo” e a prática de recorrer ao “pensamento mágico” — a escritora americana Joan Didion deu esse título ao livro que escreveu sobre o seu luto depois da morte do marido e da filha —, isto é, à recusa de retomar a vida numa sociedade materialista, ancorada nos ditames da razão.

A morte súbita de um filho ou de uma filha não é explicável, não tem nenhum consolo, nenhuma “desculpa”. Tudo passa à condição de banalidade, perante o drama. Para os que ficam, existem muitos caminhos, mas todos são tortuosos e estreitos. Para além do choque psicológico, todos os pais falam das dores físicas que os atingem como raios, em determinadas alturas.

Uma frase fica marcada: “Vivemos numa sociedade onde não há educação para a morte” (p. 56). A religião pode trazer algum consolo, mas o que acontece aos “não crentes”? Para Maria Emília, por exemplo, há a presença da filha, os sinais que detecta no universo. A outra Emília tem histórias semelhantes sobre acontecimentos inexplicáveis que, de uma estranha forma, lhe trazem algum consolo.

Os Anjos não Comem Chocolate é uma obra que se desenvolve em três planos: no primeiro, relata-se a história de uma associação, criada e mantida por pessoas que falam das suas terríveis experiências; no segundo, dá conta de vários testemunhos; no terceiro, funciona como um trabalho jornalístico de grande valor, bem estruturado, e que ajuda a compreender e a dar a conhecer estes momentos-limite, acompanhados de indicações extremamente importantes, como, por exemplo, a noção de que “as dores têm de ser vividas” (não é possível ignorá-las, determinar o tempo que duram, como se manifestam) ou certas certezas: “se as pessoas pensam que a dor vai passar como que por milagre, esqueçam” (p. 99).

Comemora-se a 9 de Dezembro o Dia Internacional dos Filhos que Partiram. Todos os anos, associações em todo o mundo juntam pais enlutados que, para além da dor da perda, têm de continuar a lidar com os problemas do dia-a-dia. Há um número elevado de separações de casais, cujas relações não sobrevivem à dor, há muitas vezes o afastamento de amigos e de outros membros da família, há a dor dos irmãos e irmãs que ficam. “Gerir” todas estas emoções é uma agonia. Para as pessoas que aqui deixam o seu testemunho, o maior desafio é o de encontrar um equilíbrio entre fé e razão, entre a necessidade de “viver bem” e de lutar, em contraste com a atracção pela aniquilação de um “eu” destruído e perdido.

Nota: A Associação A Nossa Âncora fechou portas há pouco tempo. A crise atingiu-a, também. Uma vez que, infelizmente, as mortes continuam a assombrar tantas famílias — sobretudo em desastres de automóvel —, fica-se sem saber onde estas e outras pessoas poderão encontrar um espaço onde possam continuar a falar e a ser ouvidas, compreendidas, acarinhadas e amparadas.

 

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