As duas vidas do mesmo Jimi Hendrix

Foto
O homem que reuniu a noção de espectáculo trazida do rhythm & blues com o fogo rock’n’roll e as ambições experimentais do psicadelismo

"Hear My Train A Comin’" e "Guitar Hero". Dois documentários sobre a vida de Jimi Hendrix. A música bem explicada e documentada. Já a sua vida, estranhamente, não parece exactamente a mesma

Dois DVD, Hear My Train A Comin’ e The Guitar Hero. O mesmo homem, Jimi Hendrix, e a mesma ambição: a de contar a sua história e, através dela, relevar a sua importância na história do rock’n’roll e para além dele, estatuto construído em impressionantemente curtos quatro anos. O homem retratado e os objectivos de ambos os documentários são, portanto, os mesmos. Não é a mesma, porém, a história que contam Bob Smeaton, realizador do primeiro (conta no currículo, por exemplo, com a celebrada série The Beatles Anthology), e Jon Brewer, autor do segundo (trabalhou também em filmes sobre BB King, os Yes ou os Jethro Tull).

Hear My Train A Comin’ tem a aprovação dos gestores do património de Hendrix, ou seja, parte da sua família – depois da morte do pai Al, a irmã Janie, que tinha nove anos à data da morte de Jimi, tomou conta das operações. Além da generosa quantidade de edições que tem lançado, nem sempre honestas na forma como são apresentadas ao público (chamar “novo álbum de Jimi Hendrix” a colecções de jams ou experiências em estúdio inacabadas, como o recente People, Hell & Angels, é manifestamente exagerado), tem-se assistido também à criação de uma imagem de Jimi Hendrix muito à semelhança de biopic de Hollywood, ou seja, homem santificado de percurso imaculado, 99 por cento politicamente correcto – algo extensível, obviamente, ao pai que, tardia mas muito justamente, ganhou o direito a gerir a património do filho em 1995.

Hear My Train A Comin’ segue aquela linha. Jimi é o filho muito próximo da família, Jimi terá tocado numas drogas porque assim era a época, Jimi morre não se sabe porquê: é como se, do nada, Deus o chamasse para junto de si aos 27 anos. Em Guitar Hero, com narração de Slash, guitarrista dos Guns N’Roses que é também um dos entrevistados, a par de contemporâneos de Hendrix como Eric Burdon, Eric Clapton, Dave Mason, dos Traffic, ou Stephen Stills, o pai de Jimi, Al, é descrito como alcoólico pelo seu outro filho, Leon (irmão mais novo de Hendrix), e uma antiga namorada afirma que ele sentia que não tinha uma verdadeira família – não gostava do pai mas, diz, guardava palavras simpáticas para o irmão Leon.

Em Hear My Train A Comin’, a sua morte, sufocado no seu próprio vómito num apartamento em Londres depois de ingerir uma mistura fatal de álcool e comprimidos (saberá o espectador, porque tal não é referido no documentário), foi, deduz-se, um acidente estúpido de alguém feliz com a vida e com muitos planos por cumprir (refere-se apenas de passagem a pressão que estava sofrer por parte dos agentes que queriam mais concertos e da editora que queria gravações disponíveis mais rapidamente).

Em Guitar Hero, por sua vez, Eric Burdon conta que a morte foi estúpida (bastava que a namorada de então o tivesse auxiliado convenientemente), mas que, ao entrar no apartamento em que Hendrix morreu (terá sido, conta, o primeiro a fazê-lo depois do trágico acontecimento), deparou-se com aquilo que, a seus olhos, só podia ser uma nota de suicídio. Eis então, duas histórias extraídas da mesma biografia, curiosamente disponibilizadas em Portugal na mesma altura. A verdade? Estará algures a meio.

A outra verdade? Ou seja, aquilo que foi a música de um guitarrista genial, essa está exposta nos dois. No mais formulaico Hear My Train A Comin’, documentário televisivo sem grande rasgo, mas musicalmente mais estimulante (vemos Hendrix em palco durante mais tempo e nos momentos imprescindíveis, como essa impressionante, insuperável e literalmente incendiária aparição no palco do Monterey Pop Festival). E no mais imaginativo Guitar Hero, que, contornando habilmente a impossibilidade de mostrar os momentos mais icónicos do percurso de Hendrix (a actuação em Monterey, por exemplo, é ilustrada com um vídeo deMonterey, canção de Eric Burdon & The Animals dedicada ao festival) e, através da inteligente utilização de imagens de época, nos coloca no tempo de Hendrix (passeamos verdadeiramente pela Swinging London que se revelaria de importância vital no seu percurso), apenas para se perder a meio caminho e cair, também ele, num registo documental mais banal – o momento decisivo surge quando somos surpreendidos pela banda de Dave Mason, na actualidade, a interpretar uma versão tenebrosa de All along the watchtower, após o que se seguem demasiados momentos com os elogios da praxe, ouvidos e repetidos vezes sem conta desde a morte de Hendrix. Excepção para Lemmy Kilminster, baxista e vocalista dos Mötorhead, que é sempre um prazer ouvir – entre os exercícios de futurologia inútil, é o único que não se mostra totalmente convencido de que o futuro fizesse bem à música de Hendrix: acha que, à altura da morte, estes estaria a encaminhar-se para música demasiado ambiciosa e aborrecida, sinfonias de guitarras que “ninguém iria querer ouvir”.

Num e noutro documentário, temos, musicalmente, o mesmo homem. Aquele que cresceu entre a pobreza de um bairro social e que, na adolescência, aprendeu todos os truques no Chittlin’ Circuit, o circuito percorrido pelos músicos negros numa América segregada, tocando com Little Richard, Solomon Burke ou Ike & Tina Turner sem se demorar demasiado tempo com nenhum deles. O homem que, além dos bluesman e de Chuck Berry, idolatrava Bob Dylan, com quem aprendeu que podia não saber cantar mas, ainda assim, ser um bom cantor. Aquele que, num dos acasos da história, seria visto por Linda Keith, então namorada de Keith Richards, num bar em Nova Iorque. Linda iria recomendá-lo a Chas Chandler, antigo baixista dos Animals, que o levou para Londres e, na capital inglesa, o apresentou criteriosamente a todas as estrelas da época. O primeiro concerto em que participou terá sido improvisado: conta-se em “Guitar Hero” que, estando entre o público que assistia a uma actuação dos Cream, pediu inesperadamente para improvisar com a banda, atitude corajosa dado tratar-se do trio que reunia os três maiores virtuosos do rock inglês - deixou dois deles boquiabertos (o terceiro, o eternamente amargo baterista Ginger Baker ainda hoje acha que Hendrix era demasiado show off).

Em Londres, todos foram caindo a seu pés: os Beatles, os Stones, os Traffic, os The Who ou o francês Johnny Halliday, que fez questão de o levar consigo até Paris, ao Olympia, onde se estreou a Jimi Hendrix Experience, rapidamente reunida para a ocasião (entram em cena o baterista Mitch Mitchell, “uma espécie de Keith Moon [endiabrado baterista dos The Who]”, e o baixista Noel Redding, que julgara estar a participar numa audição para guitarrista dos Animals e, quando deu por isso, entrava para a história enquanto baixista de um desconhecido guitarrista americano) .

Em Londres, Hendrix torna-se definitivamente Hendrix: o homem que reuniu a noção de espectáculo trazida do rhythm & blues com o fogo rock’n’roll e as ambições experimentais do psicadelismo, e que rapidamente aprendeu a distinguir-se entre os “dedicated followers of fashion” da cidade “swingante” – por exemplo, o famoso casaco militar novecentista que se tornou imagem de marca era item muito procurado nas boutiques mais “in” da cidade.

De Londres, já estrela em Inglaterra, sairia para a Califónia, para o Monterey Pop Festival, e aquele turbilhão de som extraído da guitarra, inaudito, impressionante até hoje, deixou os americanos de queixo caído. Hendrix, que não anteriormente fazer-se notar numa América dividida racialmente, tornava-se uma estrela nos dois lados do Atlântico. Uma estrela envolta em mistério – estava praticamente ausente da televisão, por ser demasiado transgressor na sexualidade que exalava, e portanto todos corriam aos concertos para o ver e ouvir, para confirmar se era mesmo verdade tudo o que dele se dizia. Estávamos em 1967.

Até 1970, editou mais dois álbuns de estúdio e um ao vivo, desfez e refez a Jimi Hendrix Experience, percorreu Estados Unidos e a Europa a um ritmo quase esquizofrénico, aproximou-se das raízes funk e soul com Billy Cox, antigo companheiro de tropa, e Buddy Miles, foi cabeça de cartaz em Woodstock e ali apresentou à nação, às 9 da manhã, uma versão de Star Spangled Banner tão dilacerada quanto o eram os Estados Unidos na altura –“Tocamo-lo [o hino] de acordo com o que a América é hoje”, explica no excerto de uma entrevista televisiva, de quando a televisão americana já não o podia ignorar, inserida em Hear My Train A Comin’.

Num e noutro documentário, aprofunda-se uma história muito contada e já muito conhecida. “Não consigo justificar-me em discurso”, ouvimo-lo logo ao início deHear My Train A Comin. Jimi Hendrix, o homem incrivelmente tímido, “super confiante em palco, terrivelmente inseguro fora dele”, como o descreve Linda Keith. O homem que só tinha dois grandes interesses, a música e as mulheres, oferecia nas suas canções tudo o que tinha para dizer. Estes dois documentários são eloquentes nesse aspecto. Ao ouvi-lo e ao vê-lo em palco mantém-se a sensação de que todo aquele talento e exuberância, aquele desafio às convenções nascido de anos de aprendizagem na sombra, não têm par na história do rock’n’roll – e isso quer gostasse ou não pai; que foi ou não terá sido um alcoólico de quem não gostava muito (ou que amava profundamente).

Os extras de Hear My Train A Comin’, que incluem excertos da óptima actuação da Experience no Miami Pop Festival, em 1968 (o concerto foi recentemente editado em CD), a aparição no New York Pop Festival, dois anos depois, e um registo de valor puramente simbólico (o último concerto de Hendrix, a 6 de Dezembro, na Ilha de Fehrman, registado em imagem e som sofríveis), mostram o que de melhor tem o documentário: o enfoque e destaque dado a Jimi Hendrix, cantor e guitarrista, extraordinário homem de palco.

Os de “Guitar Hero”, por sua vez, além das entrevistas completas com vários dos entrevistados pouco tem para mostrar. Queremos mesmo ver os registos em 8mm da digressão dos Monkees em que a Jimi Hendrix Experience participou, sendo que Hendrix nem vê-lo e dos Monkees, dado o formato do registo, não há som que se ouça? Não, na verdade. Mas é precisamente o recurso a fontes como esta que fazem de Guitar Hero, na sua metade inicial, um documentário muito interessante. Se pudéssemos fundir os dois, talvez tivéssemos em mãos um dos melhores olhares sobre Hendrix e a sua época.

Jimi Hendrix
Hear My Train A Comin’
De Bob Smeaton
Sony Music
***

Extras
***

Jimi Hendrix
The Guitar Hero
De Jon Brewer
Universal Music
***

Extras
**

Sugerir correcção
Comentar