A saudade é tão rentável

No dia em que houver gente a recordar com ternura aquele êxito-de-Michel-Teló-cujo-nome-não-deve-ser-mencionado, esse será o dia em que não merecemos recordar mais nada

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Richard Tenspeed Heaven/Flickr

Em 2011, Woody Allen assinou "Midnight in Paris", que gira à volta de um protagonista que alimenta uma ideia romântica acerca da cidade, focada numa era em que nem ele nem os seus pais viveram. Muito se fala de um filme do realizador rodado em Lisboa. Ponho-me a conjecturar sobre o "subject matter" de tal película. É que parece-me que parte da temática que nos assentaria como uma luva — a saudade de algo que não se chegou a viver — se esgotou com esse filme de 2011.

Há dez anos a Internet era quase como um brinquedo. O “download” por cabo era de uns estonteantes 300 k/s e as autoridades acreditavam que fechando o Kazaa se podia erradicar a partilha de ficheiros. As redes sociais e o “gaming” online despontavam. O alvo preferencial eram putos de 20 anos, como eu. As ligações tornavam-se cada vez mais baratas. Os portáteis substituíam os “desktops”. E coisas perdidas há anos no éter foram ressurgindo: imagens scannadas, vinis repicados, vídeos digitalizados de betamax e VHS. Pela primeira vez na história, as nossas memórias estavam ali, à nossa frente, enchendo os buracos naturais da memória.

Isto faz com que o instinto nos diga que nesses tempos, tudo era mais simples, mais alegre, mais autêntico. Acreditamos piamente que essa é uma impressão pessoal relacionada com a nossa experiência particular. Não é, de todo. Os media triunfaram ao convencer-nos de que o mundo de hoje é amoral, depravado, descartável e perigoso, que o futuro será provavelmente coroado com uma catástrofe qualquer e que o passado, esse sim, é o pote no fundo do arco-íris. E, de repente, uma coisa tão lusitana como a saudade universalizou-se. Tornou-se uma moda. E, claro, um negócio.

Os resultados estão à vista — páginas criadas por miúdos de 20 anos a suspirarem de nostalgia pelos Power Rangers, pelos Moto-Ratos de Marte e pelos Teletubbies. Versões de 8-bits de temas lançados em 2013. iPads a correrem jogos de Spectrum. Uma obsessão retro a uma escala bíblica, em que a humanidade, condenada a seguir em frente, decidiu fazê-lo de costas, com olhos meigos perdidos num passado que não podem tocar. Até que, finalmente, esses mesmos miúdos de 20 anos olham para os anos 60 e 70, onde nunca viveram, com a mesma mística com que a geração dos nossos avós lia a Eneida e os contos de Mary Shelley.

Talvez não tenhamos sido feitos para absorver a quantidade cavalar de informação que neste momento nos é posta em cima dos olhos, pela nossa própria iniciativa. Talvez não sejamos geneticamente aptos para processar as bibliotecas gigantescas que transportamos no smartphone. E talvez já não consigamos distinguir todas as “novidades” que surgem a cada mês em todos os domínios, e nos refugiemos na altura em que a nossa atenção era direccionada para uma coisa de cada vez.

A esperança existe em que finalmente nos fartemos de quimeras. Até porque o dia em que houver gente a recordar com ternura aquele êxito-de-Michel-Teló-cujo-nome-não-deve-ser-mencionado, esse será o dia em que não merecemos recordar mais nada.

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