Sobre a grandeza

Nada tenho a dizer sobre a biografia de Nelson Mandela que outros não tenham dito muito melhor do que eu seria capaz, mas tenho a dizer alguma coisa sobre as reacções à sua morte. Rui Tavares já aqui ontem desmontou o mecanismo habitual do fluxo informativo e opinativo que costuma suceder ao desaparecimento de uma figura de grande dimensão: começa-se no domínio da hagiografia, classifica-se em noticiários comodistas Mandela como um “pacifista” desde o nascimento até à morte (um absurdo), mas com o passar do tempo vão surgindo as vozes “lúcidas”, a alertar para o carácter primário dessas análises, chamando a atenção para detalhes ignorados, elaborando enquadramentos geopolíticos, apontando erros estratégicos ou até aspectos mais obscuros do seu percurso, que desembocam invariavelmente na constatação de que Mandela “não era um santo”.

É um facto: Mandela não era um santo. Embora, a bem dizer, nem os santos fossem santos não definição comummente aceite de santo – alguém sem sombra de pecado, que nunca na vida errou, maltratou ou manipulou. Ora, basta ter em conta, por exemplo, a forma como Lincoln conseguiu que a escravatura fosse abolida nos Estados Unidos, à conta de conspirações e votos comprados em troca de cargos públicos (o último filme de Spielberg mostra-o bem), para que percebamos com cristalina evidência que a política não é uma actividade para querubins. Sim, Mandela não era certamente nenhum santo, mas esse facto não deve, de forma alguma, servir para obscurecer a extraordinária grandeza da sua vida e do seu legado. O título do editorial do Público dizia tudo: ele era “o melhor de todos nós”. E acrescentava: “Não enterraremos nas nossas vidas um homem mais incrível e marcante do que Nelson Mandela.” É uma premonição arriscada, mas nem por isso menos sentida.

É por isso que quando Vasco Pulido Valente conclui o seu texto sobre Mandela dizendo que “a África do Sul continua dividida entre brancos ricos e pretos pobres, que sofre de uma criminalidade nos limites do intolerável” e que “com ou sem Mandela, não é um sítio recomendável”, ele está simultaneamente cheio de razão e profundamente errado. Com a verdade me enganas: a alergia à comoção generalizada, num caso como o de Mandela, ainda que travestida de “lucidez” e apoiada em “factos”, é apenas uma forma de puxar para baixo alguém que merece, por todas as razões e mais alguma, estar bem lá em cima. Nelson Mandela foi um homem extraordinário – e, por isso, o que importa celebrar é, de facto, o “extra” e não o “ordinário”. Ordinários, afinal, somos todos nós.

O que me incomoda nessa atitude, comum a algumas das cabeças mais brilhantes e inteligentes desta terra, é que muitas vezes se chama lucidez à falta de esperança e a uma atitude perante a vida que nega permanentemente a capacidade de cada um se elevar acima da mediocridade, de se superar a si próprio e de ultrapassar o egoísmo que, tal como a força da gravidade, nos empurra para o chão. Com medo de se viver iludido e de se ser tomado por ingénuo, opta-se demasiadas vezes por um cinismo que tudo contamina, e que tendo a vantagem de nos proteger contra os desenganos, impede-nos de nos espantarmos e de nos comovermos diante da grandeza de pessoas que, contra todas as probabilidades, se tornam dignas da nossa mais profunda admiração. Mandela não era santo. Mas fez milagres. Que o mundo inteiro o reconheça é para mim uma enorme fonte de conforto e de alegria.  

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