Farid recebe mais uma medalha, mas o que queria era a família a aplaudir

Quando se viu obrigado a deixar o Afeganistão, era uma criança. Farid Walizadeh, de 16 anos, refugiado a viver em Portugal, é campeão nacional de boxe e recebe esta terça-feira, na Assembleia da República, uma medalha de ouro no âmbito do Prémio Direitos Humanos.

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No ringue, quando se sagrou campeão nacional de boxe, ou na Assembleia da República, quando receber a medalha de ouro do Prémio Direitos Humanos, Farid Walizadeh não terá os aplausos de quem mais queria: a família. Separado da mãe com apenas um ano, o jovem afegão acabaria por fazer um longo périplo até chegar a Portugal, a 28 de Dezembro de 2012, e ser acolhido pelo Conselho Português para os Refugiados (CPR). Do Afeganistão terá ido para o Paquistão, depois para o Irão, por fim para a Turquia. Dias a andar a pé, a passar fome, a roubar água aos mortos que ficavam pelo caminho. Era apenas uma criança, hoje é um adolescente de 16 anos que luta todos os dias contra um saco de boxe e continua a sentir-se sozinho.

“O Farid tem fome de família”, diz Dora Estoura, coordenadora do Centro de Acolhimento para Crianças Refugiadas do CPR, onde Farid vive. A família, que pertence à etnia hazara, decidiu fugir da perseguição de que era alvo por parte da maioria sunita e, temendo que tão pequeno não aguentasse os sinuosos caminhos das montanhas, a mãe deixou-o com um casal com quem terá vivido até aos oito anos.

Depois da morte deste casal adoptivo, Farid foi morar com um tio que terá decidido, passado pouco tempo, pagar a um agente para levar a criança, então com cerca de nove anos, para fora do país. Farid conta que passou a viver em fuga, a caminhar dias inteiros, sem comer, a dormir em currais, a enfrentar o desafio das montanhas, os perigos das fronteiras. Viu gente a morrer pelo caminho, roubou água a essas pessoas mortas. Não a partilhava, era para ele. “Esse passado acabou”, diz sobre as memórias das quais não há registo e que só ele conhece.

Do Afeganistão terá rumado ao Paquistão, depois ao Irão. Já na Turquia, terá ido viver para um apartamento com alguns dos sobreviventes do périplo. Numa noite envolveram-se numa zaragata e a polícia foi chamada. Quando a criança viu que estavam todos a ser algemados, pediu que o prendessem também. Não queria ficar sozinho. As autoridades acabariam por enviá-lo para um orfanato e mais tarde para um centro de refugiados em Istambul.

Terá sido nesta peripécia que Farid inventou um sobrenome para dar às autoridades – Walizadeh. O desenrasque da altura pode valer-lhe hoje alguns constrangimentos legais: já em Portugal, Farid terá conseguido localizar a mãe e os irmãos – o pai estará em paradeiro incerto -, mas para os trazer para junto de si é preciso provar a relação de parentesco e o sobrenome Walizadeh não consta da certidão de nascimento.

Diz ter a certeza que é com a mãe que tem conversado por telefone, porque a própria lhe falou de um sinal que ele tem pescoço. Já entraram em contacto várias vezes: “Quando me sinto triste, ligo-lhe”. No CPR farão o que for possível para avançar com o processo do reagrupamento familiar, mas primeiro é necessário confirmar a relação de parentesco e que a mãe envie a certidão de nascimento de Farid, o que ainda não aconteceu.

O jovem chegou a Portugal ao abrigo de um programa de reinstalação de refugiados, depois de ter vivido cinco anos na Turquia. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados entendeu que os centros na Turquia não tinham condições para um plano de vida futuro para aqueles jovens.

Quem conhece o jovem descreve-o como tenaz, objectivo, disciplinado e metódico. “O Farid é sociável, até extrovertido. Mas aprendeu desde muito cedo a vingar por si próprio. É um pouco individualista, não quer desportos de equipa, que implicam confiar no outro. Tem tido poucas razões para confiar em terceiros”, diz Dora Estoura.

Pugilista e arquitecto
O desporto que quis treinar quando chegou a Portugal foi o boxe, depois de na Turquia ter praticado kung-fu e taekwondo. Em cinco meses, com a ajuda do treinador Orlando Madaleno, no Clube Desportivo de Arroios, chega a campeão nacional de boxe de cadetes, na faixa etária dos 15 anos.

Orlando Madaleno viu logo que ele tinha qualidades, que era “humilde, inteligente e dedicado”: “Ele nasceu para o desporto de contacto”, diz, sublinhando que Farid foi o primeiro refugiado a tornar-se campeão nacional de boxe em Portugal. Quando percebeu que o jovem tinha condições para ganhar o título, foi à Federação Portuguesa de Boxe expor o caso. O processo meteu advogados, mas a conclusão foi a de que Farid, embora não tendo cidadania portuguesa, tem estatuto de refugiado: “Ele veio para cá, está cá, tem todos os direitos como nós. A pátria dele agora é esta”, defende Orlando Madaleno, sem esconder a pena que sente por o jovem querer mudar de clube e por se queixar da falta de tempo do mestre, entretanto eleito presidente da Associação de Boxe de Lisboa.

Com o novo cargo, Orlando Madaleno já não pode estar junto às cordas nos ringues e, para Farid, a voz e as instruções do mestre no meio do burburinho dos combates são essenciais. Independentemente dos desaguisados, o treinador adora “o miúdo” e vai estar na cerimónia de entrega da medalha.

Com a inquietação de poder ou não trazer a família para Portugal, Farid também anda desconcentrado: “Não quero perder a minha família outra vez. Todos os dias penso nisto, não há mais nada para pensar”, diz. “E para ganhar um combate, primeiro é preciso cabeça, pensar bem. Só bater com força, não faz nada. Depois é preciso técnica e rapidez”, frisa.
Em Janeiro espera regressar aos ringues. Para já, treina sozinho: duas horas e meia de aquecimento, corrida e saco de boxe, cinco vezes por semana. “O boxe é uma terapia para ele”, diz a presidente do CPR, Teresa Tito de Morais. O saco de boxe foi uma oferta de um casal que pediu anonimato.

Há cerca de um ano, quando chegou ao centro, Farid pôs-se a olhar para um mapa, à procura de Portugal, nem sabia onde ficava. Só tinha ouvido falar de Cristiano Ronaldo. Teresa Tito de Morais recorda que, nessa altura, Farid não sorria. Hoje está “muito mais solto”, embora a língua, que ainda não domina completamente, continue a ser um entrave para uma inserção completa na escola e uma aprendizagem fluída. Para além de pugilista, Farid vê-se como arquitecto no futuro: “Gosto de desenhar”.

O júri decidiu atribuir-lhe esta medalha por entender que, apesar de todas as agruras pelas quais passou e das dificuldades de adaptação a um país completamente novo, Farid “revelou-se um jovem de convicções, investiu no boxe e chegou a campeão”. O presidente do júri, Fernando Negrão, diz que o gesto pretende ainda ser “um sinal” para o problema dos refugiados no mundo: “Portugal tem de se manter como um país hospitaleiro, que recebe e integra”.

Apesar de se sentir “sempre” sozinho, Farid diz que é feliz. Sabe o que quer e como perseguir esses objectivos. Na primeira entrevista, Dora Estoura perguntou-lhe: “Então, queres ser campeão de boxe?” Ele respondeu: “Não quero ser, eu vou ser campeão de boxe”.

Conselho Português para os Refugiados com dificuldades
A presidente do Conselho Português para os Refugiados (CPR), Teresa Tito de Morais, alerta para o facto de o orçamento da instituição “não ser elástico” e não chegar para cobrir as necessidades de todos os menores que vivem nos centros de acolhimento.

Para além do Centro de Acolhimento para Crianças Refugiadas, inaugurado no ano passado, o CPR tem ainda o Centro de Acolhimento de Refugiados da Bobadela, onde acolhe adultos, mas por falta de vagas também lá estão menores. Ao todo, o CPR tem a tutela de 35 menores não acompanhados, divididos pelos dois centros.

Manuais escolares, livros, roupa, comida, ténis, fatos de treino, são apenas alguns dos bens necessários. Apesar de considerar que o ideal seria que o Governo reforçasse as verbas, Teresa Tito de Morais tem consciência da situação que o país atravessa e apela à sociedade civil: às doações de particulares, mas sobretudo à responsabilidade social das empresas.

O CPR é uma organização não-governamental que vai buscar financiamento a diferentes fontes, mas no caso concreto do Centro de Acolhimento para Crianças Refugiadas recebe apoio da Câmara Municipal de Lisboa, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados.

Para o ano, começará também a funcionar o programa Família Amiga, que pretende criar a figura de padrinho para estes jovens. Não se trata de encontrar famílias de acolhimento, mas alguém que queira passear, visitar ou mesmo oferecer livros ou outros materiais ao menor. Quem tiver vontade de ser padrinho, já pode contactar o centro e submeter-se ao processo de selecção.

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