As duas reformas laborais

A contratualização do emprego público surge, com enorme evidência, como um embuste gigantesco.

Muito se falou da “reforma laboral” que consistiu numa série alentada de alterações ao Código do Trabalho, e sobre a qual, após um longo período de reflexão, o Tribunal Constitucional acabou por se pronunciar, muito benevolamente, de resto. É matéria que só não caiu no esquecimento, porque estão em jogo alguns aspectos quantitativos relevantes – remunerações de trabalho extra, compensações por despedimento, número de feriados e de dias de férias – que não deixarão de se fazer sentir no “terreno” das relações concretas de trabalho.

Quanto ao resto, pouco ou nada será de esperar, mesmo no médio prazo. A realidade social do trabalho é bastante resistente à mudança rápida, quer por razões ligadas à exigência de estabilidade imposta pela organização da vida das pessoas que trabalham, quer por idênticas necessidades das empresas, que almejam pela previsibilidade e pela segurança das soluções experimentadas.

A “reforma laboral” de 2012 pretendeu, decerto, degradar a qualidade do emprego e animou as pulsões menos positivas de alguns empresários – veja-se a onda de despedimentos colectivos dos dois trimestres que se seguiram à “reforma” –, mas, como todas as outras, será, no médio prazo, irrelevante para o emprego e para a competitividade da economia. Tem um efeito sobretudo comunicacional. Esse efeito corporiza-se numa mensagem, dirigida à população trabalhadora, e também aos empresários, segundo a qual chegou a hora de desmantelar o “contrato social” que sucessivos compromissos edificaram ao longo de mais de três décadas, e de “reorientar” o regime jurídico das relações de trabalho no sentido da sua colocação ao serviço da economia, tendo em vista o “incremento da produtividade e da competitividade nacionais”. E tudo converge numa enfática mensagem anti-labour: há que sofrer, trabalhadores portugueses.

Há, no entanto, que referir uma outra reforma laboral, mais profunda, e seguramente mais influente, que é a do emprego público. Desde que, em 2008, foi instaurada a figura do contrato de trabalho em funções públicas, com um regime parcialmente decalcado no do contrato de trabalho comum, desenvolveu-se um largo movimento de reorganização do emprego público que, para a grande maioria dos profissionais do sector, se traduziu na contratualização dos seus vínculos, isto é, no abandono do regime estatutário anterior. Punha-se assim de pé uma nova equação profissional para os servidores públicos: menos segurança do emprego, mais flexibilidade da gestão, maior dinâmica na evolução das condições de trabalho e nas carreiras.

Mas, na verdade, tudo redundou numa caricatura da contratualidade, desenhada por um empregador sem escrúpulos. 

Com efeito, num primeiro momento, sob o signo da flexibilização, impôs-se por lei a passagem de centenas de milhares de servidores públicos do regime estatutário para o de “contrato de trabalho em funções públicas”. Depois, fixou-se por lei o essencial do conteúdo desse contrato, com um significado muito diferente do da legislação sobre o contrato de trabalho comum, que é uma legislação basicamente de mínimos: o regime do contrato de trabalho em funções públicas é essencialmente fixo. Num terceiro momento, e a coberto da chamada “emergência financeira”, alterou-se, por lei, o objecto desse contrato, modificando-se o tempo de trabalho e as remunerações. Tudo isto, claro, precedido de “negociações” com os sindicatos em que nunca houve qualquer acordo.

Perguntar-se-á onde está o contrato, no meio destas manipulações legislativas. Manipulações que, de resto, se estenderam ao domínio do contrato de trabalho comum, prevalente nas empresas públicas e nas sociedades participadas. O pessoal dessas entidades, coberto pelo Código do Trabalho, foi expeditamente sujeito ao regime de tutela do chamado “sector público” e, através de normas das leis orçamentais, atingido pelas reduções e pelos congelamentos impostos aos servidores do Estado. Se não há aí algum maquiavelismo, parece: os trabalhadores destas empresas acabarão por ansiar pela privatização, na esperança da recuperação de benefícios e oportunidades…

De tudo isto ressalta, antes do mais, uma concepção utilitária da lei – “se isto é ilegal, muda-se a lei” – que, sendo adversa a valores, está também à margem (e mesmo contra) a própria noção de Estado de direito. Reduzida à dimensão de uma “ferramenta”, despida de princípios e de referências éticas, a lei serve bem para o Estado-empregador (isto é, em suma, o governo) impor a sua vontade.

A contratualização do emprego público surge assim, com enorme evidência, como um embuste gigantesco, que desvirtuou uma medida inteligente e útil – a da contratualização de funções públicas não inerentes à soberania –, convertendo-a numa abertura à prepotência, e fazendo avultar intentos de demonização e desgaste da imagem do serviço público.

Também esta “reforma laboral”, dirigida a várias centenas de milhares de profissionais, merece que se faça o seu balanço – um balanço seguramente negativo (porventura, quanto mais negativo, melhor) e, sobretudo, deprimente para quem acredita na específica dignidade dos serviços públicos e alimentava ilusões quanto à seriedade de propósitos da acção governativa.

Professor de Direito do Trabalho no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE)

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