Histórias da grande pressão

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Na maneira de filmar a violência, Jia patenteia a vontade de manipular alguns códigos do filme de kung-fu

China – Um Toque de Pecado introduz no cinema de Jia Zhang-Ke um dado novo: a violência. Uma violência física, gráfica, até agora totalmente ausente dos seus filmes, que eram crónicas melancólicas sobre uma China em acelerada transformação, e onde havia até lugar, apesar da gravidade do olhar sobre o choque entre dois mundos (a “nova” e a “velha” China), para apontamentos de uma leveza humorística – como se em Jia vivesse algum do espírito de Tati e do Sr. Hulot, algo bem expresso num filme como Still Life/Natureza Morta, por exemplo. Em China – Um Toque de Pecado, se é permitido sorrir quando em quando, o sorriso é sempre triste, nem sequer gelado. Impõe-se um olhar desolado, ditado, nos diferentes contextos explorados pelas quatro histórias do filme, pela violência, a violência exercida pelos poderosos, e a violência exercida pelos subjugados.

Na maneira de filmar esta violência, Jia patenteia também a vontade de manipular alguns códigos do filme de acção – e o próprio título “cita” o lendário filme de kung-fu A Touch of Zen, feito por King Hu nos anos 70. A este respeito, Jia vai ainda mais atrás, e a uma tradição mais remota: “As quatro histórias do filme assemelham-se a histórias dos romances clássicos chineses, onde as personagem reagem contra violência do governo. O relato do espírito heróico é o estilo narrativo tradicional chinês, e pode-se mesmo dizer que essa é a base histórica do filme de kung-fu”, diz-nos o realizador numa entrevista por mail. Portanto, para Jia a relação entre a violência do kung-fu e um comentário social não é original: “Gosto muito dos filmes de King Hu e Zhang Che, quase todas as histórias que contam mostram a grande pressão que é exercida em momentos de mudança da sociedade, e creio que se parecem muito com a nossa actualidade. Esta ideia deu-me vontade de utilizar o filme de kung-fu para contar a nossa sociedade contemporânea”.



Histórias de acção/reacção

Como que para vincar esta relação, trabalhou o argumento de Um Toque de Pecado a partir de verdadeiros fait-divers jornalísticos, encontrados aqui e ali na imprensa chinesa: “Todas as histórias se baseiam em acontecimentos reais, noticiados ao longo dos últimos dez anos”. O que as une é serem todas histórias de acção/reacção, em que a violência aparece como resposta. Era isso que Jia procurava nos fait-divers, porque “queria saber como a violência se produz a pouco e pouco na nossa vida quotidiana, e porque é que certas pessoas são compelidas à violência e outras não, estando todas submetidas ao mesmo governo”. E acrescenta, taxativamente: “Estas quatro histórias são as mais memoráveis que encontrei nas minhas pesquisas”.

Apesar da violência, e da sua encenação ficcional em tangente a códigos de género, Um Toque de Pecado não se afasta dos temas habituais do cineasta nem, em especial, da sua observação de uma China em mutação acelerada. Mas esta estratégia narrativa conduz a um olhar muito mais sarcástico e desesperado do que é habitual nele. Jia explica que foi uma intenção deliberada: “Nos meus filmes anteriores contei a vida quotidiana das pessoas, e raramente me impliquei em casos extremos. Desta vez, queria mesmo confrontar-me com gente acossada, sob uma grande pressão, e obrigada a servir-se de uma navalha ou de uma pistola para se proteger”. Em todo o caso, não se considera, pessoalmente, tão pessimista quanto o filme sugere: “Continuo optimista em relação à China, penso que só por uma mudança contínua encontraremos os meios para resolver os problemas trazidos pelas próprias mudanças, e poderemos então atenuar a pressão exercida sobre as pessoas comuns”.

Mas se muita da violência do filme é “estilo”, manipulação de códigos, não se pode subestimá-la enquanto expressão de um mal-estar real. Acha Jia Zhang-Ke que a China é hoje uma sociedade realmente violenta? “A violência é um problema comum a todos os países, mas a cultura oriental tem o hábito de permanecer silenciosa, e foi por isso que os chineses ficaram chocados pelos vários acontecimentos violentos inesperados nos últimos anos. Penso que, na situação actual, as pessoas que sofreram com as mudanças nas suas vidas, que passaram a ter um problema de sobrevivência, e que não têm forma de se exprimir ou de comunicar com os outros, vêem-se obrigadas a escolher a violência como forma de expressão”. Quando lhe perguntamos o que é que, exactamente, é mais violento na China contemporânea, a resposta vem um pouco evasiva: “Para mim, a sociedade baseia-se em cada pessoa, e os problemas das sociedades, e o silêncio a respeito deles, implicam toda a gente a nível individual. Assim sendo, o que eu queria mesmo era que Um Toque de Pecado pusesse cada pessoa a reflectir sobre si própria”.

A China e o Mundo

A mutação social chinesa também põe em destaque a coexistência de um nível de sofisticação (tecnológica, por exemplo) com instintos primordiais. É um contraste que o filme usa para ampliar o seu efeito sarcástico? “Com as mudanças sociais muito rápidas, o equilíbrio da vida quotidiana quebrou-se, e há elementos muito diferentes e muito complexos a misturarem-se nas nossas vidas. Uns são absurdos, outros razoáveis. Pode-se dizer que é sarcástico, mas eu aqui apenas quis registar, honestamente, a mudança de um país. Por outro lado, o facto de se encontrar alguma ironia no filme, e portanto um pouco de humor, talvez facilite a tarefa de reflexão de cada espectador”.

Mas o sarcasmo, notamos, também deriva do facto de, desta vez, Jia filmar menos uma “passagem”, um momento de transição, e Um Toque de Pecado se encontrar já muito mais do “outro lado” dessa mudança. Este é mesmo, já, um “novo mundo”? “O que quis fazer, ao longo de todos estes anos, foi observar e descrever a rápida mudança na China. O país nunca desacelerou a velocidade do seu desenvolvimento, e penso que a modernidade é algo ao mesmo tempo muito próximo e muito distante de nós, chineses”.

Finalmente, valia a pena notar que a China não está sozinha no mundo, o seu papel é cada vez mais central e comunicante, e que se o resto do mundo não se pode abstrair da China também a China não se pode abstrair do resto do mundo. E no entanto o filme, ou as personagens, patenteiam um sentimento de isolamento, que inclusive lhes tolhe a vontade de emigrarem, como se nem no estrangeiro acreditassem. O “estado da China” é também uma medida do “estado do Mundo”? “No filme isso [as observações sobre a inutilidade de emigrar] são as opiniões de jovens operários, e para mim representam sobretudo um sentido nacionalista um pouco extremo. Mas penso que não se deve misturar a riqueza de um país e os sentimentos por um país estrangeiro”. Porque, remata na frase com mais subtexto político de toda a entrevista, “a comunicação entre países não se faz apenas através de negócios, e precisamos de entrar no mundo com uma atitude mais aberta”.
 

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