Derreteu-se o chocolate

As assinaturas das actuais gerações mais novas não constam desse contrato. Não me parece um contrato, parece-me egoísmo.

Imaginem uma fila com um número infinito de crianças, cada uma com um chocolate na mão. A única excepção é a primeira, que está de mãos vazias. Suponhamos agora que a segunda criança dá um chocolate à primeira, a terceira à segunda, a quarta à terceira, a quinta à quarta, e assim sucessivamente.

A primeira criança ganhou um chocolate. Todas as outras dão um, mas recebem outro, pelo que comem um chocolate na mesma. A primeira ficou feliz, as outras não ficaram infelizes. Brincadeira minha? Nada disso, este é o princípio que norteia o nosso sistema de Segurança Social e, até há pouco tempo, funcionava bem.

A nossa Segurança Social baseia-se num esquema de repartição, ou seja, as contribuições dos trabalhadores, no activo, pagam as reformas de quem já não trabalha. Quando este sistema foi criado, os reformados de então receberam pensões sem que para elas tivessem contribuído (correspondem à primeira criança que recebeu o chocolate de borla). Os trabalhadores aceitaram pagar essas reformas porque esperavam que, quando se reformassem, os novos trabalhadores no activo pagassem a sua parte. E assim sucessivamente: cada geração pagaria as pensões da geração que a precedia.

Com a população a crescer, este esquema de segurança social é um bom negócio para todos. Por exemplo, suponha que cada geração tem o dobro das pessoas da anterior. Cada uma delas que contribui, quando nova, com um chocolate, vai poder receber dois, quando velha. Um investimento fantástico! E mesmo que a população não aumente em número, a verdade é que, se houver crescimento económico, o resultado será o mesmo.

Mas o que acontece se estivermos em declínio populacional? Nesse caso, como o número de contribuintes vai diminuindo, se cada um contribuir com um chocolate quando novo, quando velho vai receber menos do que um chocolate. Um péssimo negócio, mais valia guardar o chocolate no frigorífico. Essa alternativa, em que cada geração investia ou guardava o chocolate no frigorífico, corresponderia a um sistema de segurança social de capitalização, que não é o nosso.

Infelizmente, a situação em que hoje nos encontramos é de declínio populacional. Há 30 anos, por cada idoso reformado havia mais de cinco pessoas em idade activa. Actualmente, esse rácio caiu para pouco mais de três. Projecções do INE prevêem que nos próximos 30 anos esse rácio tombe para um valor inferior a dois. A este declínio demográfico acresce também um declínio económico, que faz com que durante este milénio o desemprego não tenha parado de aumentar. O declínio demográfico e o declínio económico fazem com que haja cada vez menos pessoas com capacidade para contribuir para o sistema com o seu chocolate.

Perante estes números, Bagão Félix, em artigo publicado neste jornal, argumenta que, como há menos crianças, a actual população activa, não tendo muitos filhos para criar, pode suportar um maior número de pensionistas. Este argumento é extraordinário. As famílias actuais não têm filhos porque, afogadas em impostos e desemprego, não têm condições para os ter. Por sua vez, esse declínio demográfico impede que as futuras pensões sejam tão generosas quanto as actuais. E Bagão Félix serve-se disso para argumentar que podem poupar mais e, portanto, manter intocadas as actuais pensões.

Em suma, as actuais pensões de reforma foram calculadas com base em projecções económicas que se revelaram demasiado optimistas, com os actuais reformados a receberem muito mais do que aquilo que descontaram. Além disso, os actuais trabalhadores sabem que vão receber muito menos. E não só se lhes exige que paguem as actuais pensões, como ainda que paguem cada vez mais? seja na forma de maiores contribuições para a Segurança Social, seja na forma de mais impostos ou de menos subsídios de desemprego.

Bagão Félix chama a isto um “contrato social”. Já a mim parece óbvio que as assinaturas das actuais gerações mais novas (em grande parte emigradas ou desempregadas) não constam desse contrato. Não me parece um contrato, parece-me egoísmo.

Professor de Economia da Universidade do Minho

 
 
 

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