Quando a cultura e a saúde se aliaram de forma única na história da humanidade

Pedro Graça, membro da comissão que elaborou a candidatura portuguesa, defende que esta é uma oportunidade que não se pode desperdiçar para defender a dieta mediterrânica.

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Olival Paulo Ricca/Arquivo
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Peixe fresco Rui Gaudêncio
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Caldo-verde LJ
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Amêndoa
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Laranjas Miguel Madeira
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Couve-portuguesa Adriano Miranda
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Feijão Miguel Madeira
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Peixo seco na Nazaré Pedro Cunha/Arquivo
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Espargos DR
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Figos LM

Nos últimos 8000 anos, o clima na Península Ibérica tornou-se relativamente estável, permitindo a interacção diária e intensa entre o ser humano que aqui habitava e o meio ambiente que o rodeava. É deste relacionamento intenso e aprendizagem constante que se vão modelar os hábitos alimentares dos diferentes povos desta região.

No caso do Mediterrâneo, o quadro ecológico e o posicionamento geostratégico da parte mais meridional da península vão permitir a construção de um património alimentar fundamental para a humanidade em que a cultura e a saúde se relacionam de forma única e tão simbólica que a UNESCO decidiu preservar esta contribuição imaterial, atribuindo-lhe o estatuto de bem frágil, valioso e com necessidade de ser preservado para as gerações futuras.

O património da dieta mediterrânica não é mais do que o conjunto de práticas, conhecimentos e competências associadas à produção e consumo alimentar das populações do Sul – assim como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhe estão associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte do seu património cultural. Este património cultural imaterial, segundo a UNESCO, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e proporciona-lhes um sentimento de identidade e continuidade, promovendo o respeito pela diversidade cultural e criatividade humana.

No caso do padrão alimentar mediterrânico, a relação entre comer para sobreviver e a alimentação como uma construção social e cultural é crucial para o entendimento deste “modo de viver” mediterrânico, que em grego se traduz como díaita e que mais tarde deu origem à palavra dieta.

O mundo mediterrânico caracteriza-se por um quadro climático semelhante, com precipitações irregulares e concentradas no Outono e Inverno, com vastos territórios com baixa qualidade para a produção intensa de cereal e com grande concentração populacional em determinados locais.

O homem mediterrâneo vai necessitar de todo o engenho, técnica e capacidade de adaptação para lidar com a escassez de água e alimentos. Essa é talvez a grande marca desta cultura alimentar. Uma cultura alimentar que desde muito cedo procurou a produção sustentável de grandes quantidades de alimentos ao longo do ano, que desde sempre apostou na sua conservação através do sal e fumeiro, mas que sabia que a natureza não estava ao lado dela.

Assim, não é de estranhar a referência constante à recolecção de produtos silvestres (veja-se a paixão regional por caracóis, moluscos, cogumelos…), a enorme tradição na recolha de produtos vegetais selvagens (beldroegas, espargos, agriões…), a referência constante e o estatuto da caça, a existência de uma enorme tradição de pastoreio para fornecer a proteína complementar através do queijo de ovelha e cabra (daí que a nossa tradição queijeira exclua praticamente o leite de vaca) e o recurso a alimentos sazonais frescos ou conservados que forneciam a energia necessária quando as outras fontes faltavam (figos secos, amêndoas, grão, favas e outras leguminosas, bolotas, alfarrobas…).

Esta necessidade de uma constante adaptação à escassez traça também uma riquíssima e muito diversificada culinária que é, afinal, um desafio vegetariano à escassez de proteína animal. Ou, por outras palavras, uma alimentação ambientalmente sustentável, com recurso mínimo à carne, mas capaz de manter a saúde e capacidade de trabalho das populações. E sem perder o paladar e originalidade local.

A arte culinária das regiões mediterrânicas, dado o calor e risco de contaminação pelas temperaturas médias elevadas, utiliza a cozedura com frequência nas sopas, ensopados, estufados, jardineiras e caldeiradas. Outra forma de reduzir o risco de contaminação dos frescos e das saladas é através da utilização frequente de substâncias ácidas como o vinagre, o limão ou a laranja-amarga. Para já não falar das bebidas, onde o álcool do Sul (vinho simples ou muitas vezes traçado com água) tem o equivalente no chá de hortelã ou de outras ervas aromáticas, fervido, do Sul da bacia mediterrânica.

Nas carnes e no pescado é o sal e a redução de água pela seca que asseguram a diminuição do risco microbiológico. Nas frutas, será a presença do açúcar e do mel que farão efeito semelhante de conservação.

O exemplo de Creta

Quando, na década de 40 e 50, os investigadores norte-americanos da Fundação Rockefeller chegaram a Creta e observaram os níveis de saúde da população desta pobre e aparentemente malnutrida ilha mediterrânica, tiveram uma surpresa. Ali, a longevidade era bastante maior do que na América do Norte, apesar de as condições de vida e acesso a cuidados de saúde serem bastante inferiores. A alimentação era claramente diferente da praticada pela população norte-americana.

Estas primeiras observações vão levar a que anos mais tarde, já nos anos 60, Ancel Benjamin Keys e a sua equipa iniciem de forma sistemática o estudo da relação entre esta forma de comer e a doença cardiovascular. Actualmente, o padrão alimentar mediterrânico é um dos mais estudados em todo o mundo. As populações que aderem a consumos alimentares deste tipo possuem, em média, um melhor estado de saúde, visível na redução da mortalidade por doença cardiovascular, doença oncológica e incidência de doença de Parkinson e Alzheimer.

Contudo, e apesar destas mais-valias para a saúde, meio ambiente e preservação das culturas locais, este padrão alimentar, que está ainda na base de grande parte das nossas práticas alimentares actuais, começou a ser alterado com a crescente abertura, económica, social e política, das sociedades meridionais durante a década de 60 do passado século. Até à década de 1960, a sociedade mediterrânica tinha passado quase incólume à enorme transição industrial iniciada no século XVIII no centro e Norte da Europa.

As alterações introduzidas em Portugal com a súbita modificação do tecido sociodemográfico, com a urbanização progressiva, com a entrada maciça da mulher no mundo do trabalho e com a alteração do tecido comercial permitiram que a oferta alimentar se modificasse de uma forma relativamente rápida, apesar de se terem mantido determinados traços que ainda nos diferenciam (do ponto de vista da ingestão alimentar) de outros países. Estes traços identificativos detectam-se, por exemplo, no consumo elevado de pescado, na preferência pelas gorduras vegetais, como o azeite, ou na preferência por determinados tipos de preparados culinários de que é exemplo a sopa. São hábitos alimentares que nos diferenciam culturalmente, mas que também protegem a nossa saúde, permitindo a ingestão de substâncias protectoras e reguladoras, muitas vezes com reduzido valor energético.

Num momento em que as doenças crónicas (obesidade, diabetes, cardiovasculares e oncológicas) sacodem as sociedades ocidentais representando já mais de 2/3 da mortalidade, Portugal possui uma tradição milenar cultural que nos protege, mas que pode desaparecer, se não for protegida.

Pedro Graça é director do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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