Custos dos transportes estão a impedir doentes com VIH/sida de levantarem medicação no hospital

Nos casos em que há interrupções de tratamento, doentes “podem tornar-se resistentes e desenvolver novas patologias, progredindo para sida [o estádio mais avançado da doença]”, alerta presidente do Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/sida.

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Manuel Roberto

Há doentes com VIH/sida de todo o país que estão a ter dificuldades em ir levantar a medicação anti-retroviral aos hospitais devido ao custo dos transportes e ao agravamento das suas situações de vida por causa da crise, constatam médicos infecciologistas de todo o país.

A consequência, em alguns casos, está a ser a interrupção de uma terapêutica que implica a toma diária de medicamentos até ao resto da vida, “o que poderá levar ao desenvolvimento de resistências ao tratamento” e à necessidade de passarem a tomar fármacos ainda mais caros, alerta a infecciologista do Hospital Amadora-Sintra Teresa Branco. <_o3a_p>

A medicação anti-retroviral é distribuída gratuitamente pelas farmácias hospitalares e, manda um despacho do Ministério da Saúde de Fevereiro deste ano, não deve ser dada por períodos inferiores a 30 dias. <_o3a_p>

“As pessoas não têm dinheiro para transportes públicos, nem sequer uma vez por mês. Muitas vezes têm que tomar vários transportes para vir cá, muitos estão desempregados ou recebem rendimento mínimo”, constata a médica do Hospital Amadora-Sintra, onde são seguidos cerca de 1500 doentes a tomar anti-retrovirais.<_o3a_p>

Quando detecta este tipo de dificuldades, o que faz é encaminhar os doentes em dificuldades para as assistentes sociais. O problema, sublinha Teresa Branco, é que “o hospital não tem recursos". "Os assistentes sociais não têm dinheiro para pagar os transportes destes doentes. Estamos no meio da crise.” Nas zonas mais distantes do hospital, a 30 e 40 quilómetros, ir ao hospital pode implicar um gasto de 20 euros.<_o3a_p>

Assim sendo, há pessoas que vão bater à porta de associações. É o caso da Liga Portuguesa contra a Sida. Sílvia Rocha, responsável pela área de apoio social nesta associação, diz que tem havido pedidos para ser a associação a ir levantar a medicação por eles ao hospital, mas conhece casos em que já “há interrupção da terapêutica”. A técnica lembra que, além do custo das deslocações para as irem levantar, acresce o custo dos fármacos para tratar patologias associadas ao VIH/sida, como é o caso da pneumonia.<_o3a_p>

“Há doentes aflitos”
“Há doentes aflitos”, diz Ana Horta, médica do Hospital Joaquim Urbano, no Porto, admitindo que há casos de interrupção dos tratamentos. A médica, que segue cerca de 500 doentes com VIH/sida, estima que uns 15 se “vêem muito aflitos, são pessoas que passam fome para conseguir cumprir a terapêutica”. Ana Horta encaminha os casos mais graves para a assistente social, que tenta dar-lhes senhas de transporte para não falharem, como acontece com os doentes que tomam metadona diariamente. Mas ainda na semana passada teve um doente que esteve sem tomar os fármacos três dias, para vir apenas ao hospital no dia da consulta. Ou então ouve pessoas que “pedem para marcar consulta apenas depois de receberem”, para assim terem dinheiro para os transportes.<_o3a_p>

A questão do custo dos transportes é agravada pelo facto de a regra de a medicação ter de ser dada pelo menos para 30 dias não estar a ser cumprida, dizem médicos e associações contactados pelo PÚBLICO.<_o3a_p>

A entrega de medicação anti-retroviral a conta-gotas tinha sido detectada no ano passado, admite António Diniz, director do Programa Nacional para a Infecção do VIH/sida. A tutela mostrou-se sensível ao problema e o secretário de Estado adjunto e da Saúde, Leal da Costa, emitiu o tal despacho de Fevereiro deste ano que pretendia pôr cobro à entrega de medicação para períodos inferiores a um mês, lembra o responsável. Mas a situação não parecer ter ficado resolvida. “Desde Outubro chegaram-nos relatos de cidadãos e organizações não-governamentais dizendo que essas situações se estão a repetir”, diz António Diniz. <_o3a_p>

Neste momento, estão a inquirir os hospitais para perceber se o problema persiste e a que razões se deve. António Diniz admite que “é um contra-senso": “Por um lado, pede-se às pessoas para aderir ao tratamento, por outro, criam-se obstáculos, como é fazerem as pessoas deslocarem-se três a quatro vezes ao hospital, havendo risco de falência terapêutica."<_o3a_p>

Joaquim Oliveira, infecciologista do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e presidente da Associação Portuguesa para o Estudo Clínico da Sida, diz que a intenção do despacho governamental foi desvirtuada e que as administrações dos hospitais estão a usar o despacho como desculpa para não dispensarem fármacos para mais de mês, quando dantes davam períodos mais alargados. <_o3a_p>

O despacho até abre, em teoria, a porta a excepções, à entrega de fármacos para períodos superiores a um mês, “no caso de doentes que vivam longe. “Na prática não tenho conhecimento de que tenha havido este tipo de pedidos. O problema é transversal ao país”, observa o infecciologista.

Contornar o problema
Luís Mendão, presidente do Grupo Português de Activistas sobre Tratamentos de VIH/sida (GAT), lembra que, em vez de os doentes terem de ir buscar a medicação, “que terão que tomar toda a vida”, uma vez por mês, às vezes é duas vezes por mês, outras vezes vão ao hospital e dizem-lhes que não têm, para voltarem "para a semana”. “Quase todos os hospitais tiveram stocks ou ruptura de stocks”; depreende que seja por limitações orçamentais dos hospitais. “Desde Setembro deste ano até agora, o site do GAT recebeu mais de 50 queixas de dificuldades no acesso à terapêutica.”

O responsável do GAT alerta que “a maior parte das pessoas com VIH têm pequenos rendimentos ou ordenados muito baixos, não têm condições para fazer várias deslocações ao mês”, nem têm tempo para irem ao serviço durante o horário das farmácias hospitalares, que coincide com a sua jornada de trabalho.<_o3a_p>

Luís Mendão diz que é importante saber quantas pessoas desistiram do tratamento por dificuldades em levantar medicamentos, lembrando que a toma diária é a única forma de “as pessoas se manterem bem e evitarem novas transmissões”. Nos casos em que há interrupções, o activista lembra que alguns “podem tornar-se resistentes e desenvolver novas patologias associadas, progredindo para sida [o estádio mais avançado da doença]”. No fim da linha, assistir-se-á “a mais internamentos, ao recurso a terapêuticas de terceira linha, mais caras". "Não estamos a poupar, tanto em termos de saúde individual como colectiva”, sublinha.<_o3a_p>

O presidente da Associação Portuguesa para o Estudo Clínico da Sida diz que, em Coimbra, seguem doentes da Guarda, Vilar Formoso, Castelo Branco, Marinha Grande. “Há doentes que sempre foram seguidos por nós que estão a tentar arranjar hospitais mais próximos.” É o caso do Fundão. Mas, por exemplo, “no caso de doentes da Guarda, não têm alternativa” e a cidade fica a 150 quilómetros de Coimbra. Alguns doentes com mais posses têm arranjado formas de contornar o problema. Em Coimbra, há quem recorra a empresas de entrega de encomendas, algumas aceitam ir levantar a medicação ao hospital para depois a ir levar ao doente, por valores que podem rondar os dez euros, mas isso “coloca problemas de confidencialidade”, faz notar. <_o3a_p>

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