Pedro Burmester
A mãe quis que ele fosse o melhor pianista do mundo

O que é preciso para estar entre os 50 melhores pianistas do mundo? O que é preciso sacrificar? Pode-se renegar uma bênção? E importa ser o melhor pianista do mundo? Pedro Burmester foi treinado para ser o melhor no que fazia

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Pedro Burmester tem o mesmo brinco que lhe apontei há 20 anos quando o entrevistei para a Rádio Nova. Disse-me então que o tinha posto nos Estados Unidos, de onde tinha regressado não há muito tempo. O brinco era uma marca iconoclasta. Uma provocação à burguesia portuense de onde Pedro provém. Ali ficou.

Nessa altura, apesar da sua juventude, Pedro Burmester já era o Pedro Burmester. Pianista respeitado, artista de quem se espera um percurso de excepção. De certa maneira, ele sempre foi o Pedro Burmester porque desde criança se esperou tudo dele. Mas depois é a vida. Ao talento soma-se o trabalho, o trabalho, o trabalho. O sentido da humildade. O valor da crítica. Demora a perceber que o elogio não presta para nada. Não presta para nada? Que fez ele com que lhe deram?

Pedro Burmester tem 50 anos. Vai tocar pela primeira vez na Casa da Música, já no dia 8, de que foi o primeiro director artístico e de onde saiu incompatibilizado com Rui Rio, então presidente da Câmara do Porto, tema sobre o qual prefere não falar. Decidiu que não tocaria mais na cidade como forma de protesto político. Passaram dez anos. Está nervoso? O público está nervoso? Ele não quer que a vida se meta na música. A música é uma vida própria. Portanto, a resposta à pergunta: “Miúfa?” é nem por isso. Não antes. Não durante. Depois, logo se vê.

A entrevista aconteceu na Casa da Música, num sábado à tarde. Antes de chegarmos a uma sala virada para a rua, ele apontou um recanto com uma acústica peculiar. Disse: “Era aqui que me refugiava quando precisava de estar em silêncio.” Foi há muito tempo o tempo em que estava do lado da gestão artística. Agora é tempo de palco. E é tempo de olhar para trás e para uma obra de Liszt...

Quando é que foi criança?
[pequeno riso] Começa logo com uma pergunta difícil. Gosto de não perder [essa criança que há em mim]. Ainda por cima agora, que tenho filhos. Quatro, e uma é pequenina. Quando uma pessoa se depara com uma criança pequenina, volta a deparar-se com a criança que foi.

Qual é a primeira definição que lhe ocorre para “ser criança”?
Olhar para as coisas com frescura. Olhar com vontade. Aceitar as coisas como elas são. Experimentar. Testar. Fui adulto muito cedo no sentido em que a minha profissão me obrigava à responsabilidade.

Quando perguntei quando é que foi criança, estava a pensar na responsabilidade de ter uma plateia que não se pode defraudar. Isso aconteceu muito cedo na sua vida.
Lembro-me muito bem da primeira vez que fiz um recital a solo. Tinha dez anos. Em Braga. Lembro-me da angústia.

Angústia anterior ou durante a apresentação?
Anterior. Do durante não me lembro. “Que responsabilidade, estar sozinho no palco a tocar para pessoas.” Foi doloroso esse tempo que antecedeu o primeiro recital — e repete-se sempre. A ansiedade, o desconforto mantêm-se. O que vamos é sabendo lidar com isso.

Os focos desse desconforto são: será que me vou enganar?, será que vou estar à altura das expectativas? São coisas diferentes.
São esses, mas também: “Não gosto que olhem para mim.” [riso] Numa profissão como a minha, é um bocadinho chato. Fui combatendo isso assim: “O que estou a tocar não é só para mim, é também para as pessoas.” Se tiver uma atitude de dádiva, custa-me menos. Essa generosidade que é preciso ter quando se pisa um palco, e que me fez vencer esses medos, só nos últimos anos é que a percebi.

Estas pessoas da plateia podiam ser a família, o círculo mais estrito, uma massa anónima?
Podem ser dez ou cem: é igual. Pode ser uma sala grande ou uma sala pequena: é igual. Não é o número.

É muito diferente quando toca só para si ou quando toca para outros?
Já não toco para mim. Toquei para mim muitos anos, nos concertos. Ou seja, ouvia aquilo que queria ouvir. Era um processo interior. O público estava lá mas eu tentava fechá-lo. Tentava que não interferisse ou não senti-lo, sequer.
Quando estou a estudar, estou a trabalhar; não é tocar para mim. Aprendi a tocar para os outros, a ter prazer nisso. Fez-me voltar a pisar os palcos com vontade, com gosto. Há dez, 15 anos, pensava: “Se calhar isto não vai durar muito mais...” A Casa da Música [de que foi director artístico] foi um bom pretexto para me virar para outro lado. Depois, a vida dá voltas.

Voltemos à infância. Quem é que o fez pianista?
Muita gente. Muitos professores. Muito a minha mãe. Se não fosse a sua paciência e motivação, provavelmente teria desistido algures na infância. Não é fácil, a partir dos sete anos, manter a obrigatoriedade de estudar todos os dias. Temos de fazer escalas e arpejos, uma espécie de ginástica dos instrumentistas. Não é propriamente música, é exercitar a máquina. Eu detestava. A minha mãe sentava-se ao meu lado e lia.

Lia?
Basicamente russos. O Tolstói, o Górki, o Dostoiévski. Lia alto enquanto eu fazia escalas. Eu ficava entretido, a mexer os dedos e a ouvir uma história. Essa presença, a motivação inteligente, não me deixaram não levar o piano a sério.

A sua mãe tinha o desejo de ter um filho artista?
Teve vários filhos artistas. Nunca o manifestou dessa forma. Mas achava que a arte e todas as expressões artísticas eram fundamentais para a educação. Ler, ver exposições, cinema, ouvir música: faziam parte do dia-a-dia, como comer.
Devo o ser pianista à minha mãe. E à Helena Sá e Costa. Fui aluno dela entre os sete ou oito e 18, duas vezes por semana, todas as semanas, na fase mais importante e mais difícil. (Hoje dou aulas no ensino superior e digo que não sei dar aulas a quem começa.)

Como é que Helena Sá e Costa ensinava?
Dirigia sem dirigir. Dava por mim a tocar obras sem perceber como é que tinha chegado ali. O seu plano pedagógico era: cada aluno é um caso.

Era afectuosa?
Era. Mas era sempre tudo pela música. A música era uma devoção. Vivia para aquilo. A música, o texto musical, eram sagrados.

E os instrumentistas eram apóstolos desses textos sagrados?
Exactamente.

Helena Sá e Costa nunca casou nem teve filhos?
Não. Era casada com aquilo [o piano]. Eu gostava muito dela, ela gostava muito de mim, mas era a música que nos juntava.

Como era o reforço que ela fazia? Das suas qualidades, das suas conquistas.
Elogiava-me muito. Até achava estranho. No outro dia, apanhei uma carta com imensos elogios. Quase corei!, ao reler a carta.

Como já passaram muitos anos, pode partilhar o conteúdo?
Essencialmente elogiava o meu carácter, a minha maneira de ser, mais do que as minhas capacidades artísticas. Li a carta e fiquei atrapalhado. Jesus!, não sou digno destes elogios. Portanto, ela elogiava-me muito e isso motivava-me. Também aprendi cedo, e com ela, a importância da crítica e da capacidade de nos auto-avaliarmos.

Admiração e estima são coisas diferentes. Mas especialmente nos casos de pessoas precoces tendem a confundir-se. Essa confusão pode ser um nó emocional difícil de resolver. “Reforçam-me e elogiam-se porque sou precoce e não defraudo as expectativas?; se estiver parado e calado, gostam de mim da mesma maneira?”
Pois. Pois. Pois. Nunca misturei o lado pessoal com o que fazia. Uma coisa sou eu, outra coisa é aquilo que eu faço.

Também para isso é precisa uma aprendizagem.
Sim. Conto a história de um professor que tive, francês. (Tive muitos professores por períodos curtos, além das aulas com a Helena Sá e Costa.) Só tive uma aula com ele, em Vila Real, na Casa de Mateus. Disse-me que tudo aquilo que eu fazia não valia grande coisa. Eu toquei. No fim perguntou-me: “Esforçaste-te muito para tocar assim? Tiveste de estudar muito, tiveste de pensar muito? Se te puser uma partitura, ao cabo de meia hora, és capaz de fazer mais ou menos o mesmo que acabaste de fazer?” Olhava-me com um ar irónico, já sabendo da resposta. “Se não fazes grande esforço e se te sai assim, porque tens talento, que é que queres que te diga? Isso não vale nada.” Era uma aula pública. Muita gente a olhar, pessoas na sala foram chamar outras. “Está a dar forte e feio no Pedro.”

A humilhar.
A humilhar. Eu estava roído de raiva. “Mas quem é este tipo que vem dizer isto quando só ouço elogios?” Claro que ele tinha razão. Eu tinha 14, 15 anos. Essa frase bate-me à porta todos os dias. Ou quase. De facto, a facilidade estava cá, está cá. As coisas complicadas quando se começam — junção de mãos, independência de mãos, usar o pedal... são problemas que nunca se me puseram.

Como se isso lhe fosse instintivo?
Sim. O meu primeiro professor, com quem só tive meia dúzia de aulas, descreve nas suas memórias a primeira aula que me deu. Antes de aprender a tocar piano aprendi a ler música. Estive dois ou três meses a decifrar o código da música. Quando cheguei à primeira aula e o professor me pôs a partitura à frente eu já sabia que o sol era o sol, o ré era o ré e onde eram no piano. Toquei do princípio ao fim. Quando acabei, o professor olhou para a minha mãe e disse: “Nunca me apareceu à frente alguém que fizesse isto.” Aquilo pareceu-me evidente. Mas era uma habilidade que não serviria de muito se não fosse desenvolvida. A frase “isso não vale nada” é verdadeira. A facilidade, a partir de certa altura, tornou-se um obstáculo e não uma vantagem.

Por causa dessa facilidade, há um momento em que parece que a máquina funciona sozinha, e por isso não vale nada? Mas há um momento em que começa a existir criação e arte.
Não acho que exista por aí além na interpretação de obras de outros. A criatividade e a arte estão na obra que eu toco. Não estão em mim.

Está a ser modesto.
Não estou, não. Eu não sou o criador.

Peguemos numa obra tão conhecida como as Variações Goldberg de Bach; tocadas por Glenn Gould ou por Keith Jarrett são coisas diferentes. Existe uma margem, que não é pequena, de criatividade na interpretação.
Não. Existe apenas um olhar diferente sobre a mesma coisa. Não se parte de uma folha em branco. O Glenn Gould achava o contrário. Dizia: “A obra está a posar para mim.” Eu acho que não. Não posso comparar-me ao compositor, de maneira nenhuma. Do que você fala não é da criação, é do espaço para a interpretação. Eu leio um texto e posso ler mais coisas naquele texto do que outra pessoa. E isso pode acontecer também com o mesmo texto que revisito anos depois.
Onde acho que podemos tocar esse lado — que chamamos criativo, artístico ou menos explicável — é no palco. Por mais que estudemos as obras e saibamos o que vamos fazer, há coisas que só acontecem no palco.

Explique melhor.
Eu já não sou eu e é a música que me está a levar. (Isto está explicado, tem um nome. Creio que foi António Damásio que falou deste fenómeno.) Nesses momentos, sinto que fico perto disso a que chamam “criar”. Pode ser uma ilusão, provavelmente é. Mas quando uma pessoa sente que capta o espírito da obra — é mesmo isto que o compositor está a dizer — é muito bom.

Diz isso e sorri. A sua cara ilumina-se.
É mesmo bom. Bate tudo certo. Ouço, sinto, é aquilo. Nisto há intérpretes que são extraordinários e outros que são bons. Há imensos bons. Extraordinários serão 50.

O que é preciso para estar nesses 50?
Inteligência. E diligência. Beethoven era fã deste conceito. Uma pessoa diligente é uma pessoa que prossegue um objectivo sem se desviar.

Helena Sá e Costa — por falar em prosseguir um objectivo diligentemente.
Sim. É preciso ir até ao fim das coisas. Não desistir. Isto traduz-se em trabalho, trabalho, trabalho. (No outro dia, falava com o Siza: “Isto não é mais nada senão trabalho.”) Percebo perfeitamente o que diz. Não é com inspiração divina que se chega mais longe.

Quando é que decidiu ser pianista? Podia ter sido arquitecto, por exemplo, e não pianista? E nesse caso seria hoje um melómano que teve o piano como paixão. Gostava de saber da compreensão que teve de si mesmo e do que queria fazer.
Nunca tive muito, devo confessar. Ainda hoje, meio a brincar meio a sério, digo aos meus filhos: “O pai ainda não sabe o que vai ser quando for grande.” Ainda não sei bem qual é o meu papel aqui... Não acrescento grande coisa ao mundo. Não sou nada ambicioso em termos de carreira. Claro que tenho de trabalhar para viver, e faço-o com gosto, mas, para esse fim, tanto podia fazer isto como outra coisa qualquer. Fazer o que faço é um privilégio. Não o vejo como obrigação ou profissão.

Resposta pífia que não me esclarece nada.
Tem razão. Hum... Quando cheguei aos 18, 19, 20 anos, o histórico já era grande. Ou é isto ou é outra coisa? Nunca me fiz esta pergunta. Continuei, apenas.

Nem a sua mãe, com a mão de ferro que tinha, lhe disse aos 18 anos, quando acabou o Conservatório com 20 valores...
A minha mãe queria que eu fosse o melhor pianista do mundo. Pronto. [riso] Eu não podia fugir disto. Não podia. Não podia.

A sua mãe verbalizava de que maneira o desejo de que fosse o melhor pianista do mundo?
“Quero que seja o melhor naquilo que faz. Quero que seja bom naquilo que faz.” Tive outro professor, um russo em Chicago, com quem estudei três anos. Gostava do lado infeliz das coisas. Gostava do que corria mal, do falhar. É um lado interessante. Na última aula que tive, disse-me: “Não tens hipótese de fugir.” Era crente e traduziu isto desta forma: “Foste abençoado. Tiveste uma dádiva, não podes escapar.” Não levei muito a sério, mas volta e meia penso nisso. Houve tanta coisa que as pessoas me deram — porque tenho este talento — que não [o] posso deitar fora.

Ao mesmo tempo, foi ficando refém disso, do que queriam para si?
Sim, mas nós ficamos sempre reféns de alguma coisa. Mais vale ficar refém de qualquer coisa de que se gosta. A outra hipótese era ser pedinte, vagabundo.

Pedinte, vagabundo? Que coisa abstrusa lhe ocorre.
Pedinte no sentido filosófico. Como é que se chama o tipo da Grécia Antiga que vivia na rua? Diógenes Laércio. A alternativa a não ser refém de nada era ir por aí e ser como o Diógenes Laércio. É interessante também, mas já não vou a tempo.

Acabou o Conservatório aos 18 e aos 20 foi para os Estados Unidos. Nesses dois anos, interrogou-se sobre se queria estar entre os 50? E condicionar toda a sua vida a esse projecto. Ou queria manter um comprometimento com a vida?
Pois. Pois. Não fui capaz de o fazer [casar com a música]. Nessa altura, até seria capaz. Hoje, vejo o que perderia se assim fosse. Se calhar não tinha os filhos que tenho, a mulher que tenho, não tinha este lado que é tão bom. Não me arrependo.
[pequena pausa] Outra história engraçada que me contou um amigo violinista, há muitos anos. Havia na Checoslováquia um violinista sem igual. O meu amigo teve aulas com ele, ouviu-o, perguntou-lhe: “Porque é que você não fez carreira? O que é que está a fazer numa terriola da Checoslováquia, a dar umas aulas? É um dos melhores violinistas do mundo.” “Eu sei. Contento-me só com a ideia.” [riso] Eu também me satisfaço se naquilo que faço for bom. Não preciso de dizer às pessoas: “Oh, que bom que eu sou.” Contento-me com a ideia. Não tenho de ser um dos 50 melhores do mundo.

Acha, pelo menos, que está nos 100 melhores do mundo?
Não sei se estou, nem quero estar, não me interessa. Mas acho que amanhã tenho de fazer melhor do que fiz hoje. E tenho de ser diligente.

Quando foi para os Estados Unidos, de facto, o que é que queria?
Eu estava a estudar. Estudava muito, muitas horas. Estudei com o Sequeira Costa, que era, e é, um professor extraordinário. Fui para os Estados Unidos porque ele estava lá. Sabia muito, não só de música mas de um outro aspecto que a Helena Sá e Costa pareceu nunca valorizar: um aspecto técnico. “Sei o que quero, mas agora como é que faço a coisa?” Como é que me relaciono com o instrumento de modo a fazer aquilo que quero realmente fazer? Ela dizia: “Tu hás-de lá chegar se sabes o que queres.” É verdade. Talvez demore mais tempo.
Com o Sequeira Costa, eram aulas de um pormenor doentio. Deu-me uma grande segurança.

Como assim?
Muito do que eu fazia era intuitivo. A partir daí, incorporei um processo racional.

Posso dizer que Helena Sá e Costa era mais intuitiva e emocional e ele era mais formalista e racional?
Simplificando, sim. Aprendi muito, também, a ouvir. Fui ao festival de Salzburgo uns 12 anos seguidos. Com a minha mãe. Assistia a concertos diariamente. Estava lá o melhor do melhor. O [Maurizio] Pollini, o [Alfred] Brendel. Acabava o concerto, mal chegava ao piano, imitava-os. Aprendi de muita gente.

Foi determinante (porque importante foi de certeza) a relação pessoal e o entendimento pessoal com os professores?
Não. É uma coisa muito portuguesa: mistura-se a relação pessoal com a profissional. Houve casos em que não gostei da pessoa, mas isso não contava. Com outros professores, tive uma relação muito próxima. Com a Helena Sá e Costa. Com o professor de Chicago (tinha aulas em casa, três, quatro horas, e depois jantava com ele e a família. Bebíamos uma garrafa de vodca ao jantar. A seguir ia para casa aos esses). Às vezes, essa relação [pessoal] deturpa o outro lado [profissional]. Afecta o que o professor me vai ensinar. Pode ser mais tolerante...

Como é que foi o choque com a cultura americana? Ia de um meio pequeno como o Porto.
Fui para um meio ainda mais pequeno. O Sequeira Costa ensinava na Universidade de Kansas. Nem sequer era Kansas City, que é uma cidadezita. Fui para uma terra chamada Lawrence, onde vivia o William Burroughs.

Já tinha lido Burroughs?
Já. Mas só soube que ele tinha vivido em Lawrence mais tarde.

Parêntesis para falar das suas outras formações. Tem um irmão pintor (Gerardo), uma irmã fotógrafa (Rita). Tinha próximo de si outras maneiras de ler o mundo.
Sou o quarto. A minha irmã mais velha morreu há pouco tempo. Tinha trissomia 21. A seguir é o Gerardo, depois o Xano, Alexandre, que é arquitecto. Eu e a Rita. Passava horas a ver o meu irmão Gerardo pintar. Passava horas a vê-lo discutir com o grupo Puzzle em 1975, 76, 77; ao fervor artístico juntava-se o fervor da revolução. Acreditavam que a arte ia mudar o mundo. Tempos fantásticos. Eu tinha 11, 12, 13. E lia muito.

Quem é que lhe passava os livros para a mão?
Os meus irmãos mais velhos e a minha mãe. Ouvia muita música que não a clássica. Punk, rock. Sobretudo com o meu irmão mais velho. E tardes a ouvir óperas inteiras de Wagner. Estas coisas exigem tempo. E ter tempo para ter tempo. Não se compadecem com a velocidade das coisas de hoje em dia.

Outro luxo: ter tempo para pensar, deglutir, aprender?
Sim, sim. Gostava e gosto de estar sozinho. A não fazer nada. A pensar, só.
Voltando ao Kansas. Era mais aldeia que o Porto. Veio mudança ao mundo porque era outra cultura. Porque tinha muita neve (depois de três meses em que tudo é branco, é terrível). Senti a falta do mar.

Foi a primeira vez que esteve separado da sua mãe? Emocionalmente, o que é que representou?
Assim longamente, sim. Foi pior para ela do que para mim.

Era um meio muito competitivo?
Competitivo no sentido “ou mato ou morro”? Não. A competitividade passava-me ao lado. Não dou luta a quem é muito competitivo.

Porque é que nunca foi muito competitivo? Porque nasceu rico?
Também. Não tive de batalhar para comer. Pode ser por feitio. Conheço gente rica muito competitiva. No desporto, numa coisa factual — quem corre mais rápido, quem salta mais alto, quem chega mais longe? —, gosto da competição.

Porque isso se pode medir?
Sim.

Quem toca melhor não se pode medir.
Não. Estou a pensar se me mexo porque alguém me pica... Acho que não.
Em todo o caso, foi um aguilhão o professor francês ter dito “o que é que isso vale”? Não é bem competição...
Mas não anda longe. Foi um aguilhão, sim, sim, sim.

Teve um grande peso na sua vida ter nascido numa família burguesa?
Teve, certamente. [riso]

Há a imagem romântica do artista e grande criador sozinho, proscrito, a passar dificuldades. No século XIX. Estou a perguntar pelo papel da dificuldade na sua vida, que foi, sob muitos aspectos, nomeadamente do ponto de vista material, uma vida facilitada.
Seria melhor se tivesse tido dificuldades?

Não é bem isso que procuro saber. Vou dizer assim: o que é que a dificuldade o fez fazer? O que é que teve de provar?
Não dou grande valor àquilo que faço, se calhar, por causa disso. Tive logo a Helena Sá e Costa. Tive logo um piano em casa. Tive logo a sorte de ir para Salzburgo. Ainda bem. Mas não me valorizo por causa disso. Como dizia o outro: “Isso vale alguma coisa? Fizeste algum esforço para [ter] isso?”

É terrível ouvi-lo dizer que não se valoriza muito.
Estou numa fase em que não sei responder a isso.

Tem 50 anos. Fase boa para uma pessoa se interrogar acerca do que conquistou e do que foi dado.
Sim.

Nas fotografias antigas que trouxe consigo, numa estava com a sua mãe, em Salzburgo. Ela trazia um vestido muito elegante. Noutra, com Helena Sá e Costa, tinha uma atitude muito cúmplice. Elas tinham uma boa relação entre si ou competiam?
[riso] As mulheres... Não, não competiam. Gostavam uma da outra. Davam-se bem. Não havia: “O menino é meu.” Até porque o menino não era de nenhuma.

O seu pai dizia “o menino é meu” do seguinte modo: coleccionava os seus recortes.
Tinha tudo. O meu pai era alemão e espanhol. Gostava muito que nós, filhos, tivéssemos ido por esta via, embora olhasse com desconfiança. A vida de artista era, aparentemente, uma vida mais incerta, insegura, arriscada. Ao mesmo tempo tinha muito orgulho no que fazíamos. Adorava que eu desse concertos, que as pessoas gostassem. Tudo o que era entrevista, programa de concerto, memória do meu trajecto, guardava religiosamente. Graças a ele, tenho um arquivo desses anos. A primeira coisa que me perguntava quando vinha dos concertos era: “Trouxe os programas?”

A sua mãe perguntava: “Correu bem”?
Sim. E: “As pessoas gostaram?”

Não é o mesmo. Qual é a história do seu pai? Nasceu na Alemanha e veio para cá?
Nasceu cá. Mas com 18 anos foi para a Alemanha fazer a Segunda Guerra, entre 1941 e 45. Esteve em Itália, em França e acabou na Alemanha. Foi uma marca fortíssima, evidentemente, na vida dele.

Teve de ir porque era alemão?
Sim. E porque o pai achava que ele devia ir. Quando deu por ela, quando percebeu o que foi defender, foi terrível. Um choque tremendo. “Estive a combater por aqueles energúmenos?” Passou o resto da vida a fazer a psicanálise daqueles anos.

Falava disso?
Falava bastante da guerra, mas da guerra.

Do ambiente de trincheiras? Do perigo, do medo da morte?
Sim, histórias de guerra. Não falava de como isso o afectou. Lembro-me de uma história de um bombardeamento em que conseguiu tirar dos escombros um bebé que estava a chorar, protegido pelo corpo da mãe. Um bebé que entregou à Cruz Vermelha. Histórias destas contava quase diariamente.
A minha mãe detestava os alemães. Alguém lhe terá dito: “Ainda hás-de casar com um alemão.” Ela dizia que a guerra tinha feito dele uma pessoa madura, sofrida, interessante. Foi disso que ela gostou nele.

Esteve ligado a pessoas de esquerda, apesar da sua educação burguesa e de, habitualmente, as pessoas do seu meio social se posicionarem à direita. A política representa uma dimensão importante na sua vida? Situa-se à esquerda desde quando? Ou trata-se apenas da associação a pessoas de esquerda?
Começou por ser uma associação a pessoas de esquerda, e depois à esquerda porque a esquerda acredita mais no ser humano. A direita tem receio. Acha que o ser humano, por natureza, não é boa coisa. Ou diz que há uns mais fortes e outros mais fracos e paciência, é assim a vida. A direita desconfia da capacidade de bondade das pessoas. Ontem, disseram-me uma frase engraçada do [cineasta] Fritz Lang: “Só há pessoas más e pessoas muito más. Às más, normalmente, chamamos boas.” [riso] O fundamental para mim: criar igualdade de oportunidades. Senão estamos a desperdiçar as pessoas, e isso não é admissível.

Isso ao invés do “salve-se quem puder”?
Não consigo conceber o “salve-se quem puder”. Não consigo olhar para as pessoas e pensar: “Tive sorte, tiveste azar.” Isto está à esquerda. Eu estou desse lado. Não estou do lado de nenhum partido. E, quando estive, foi por causa de pessoas: Jorge Sampaio.

Foi mandatário de Jorge Sampaio.
Com protestos em casa! [riso] Duraram pouco. Era uma casa onde maioritariamente se votava à direita. Depois, os meus pais foram muito admiradores de Jorge Sampaio e da maneira como exerceu a presidência.

Quando é que cortou o cordão umbilical com os seus pais? Quando é que assumiu as suas posições ideológicas? O que é que representava contrariar a sua mãe, que tinha dedicado a vida a fazer de si o melhor pianista do mundo?
A minha mãe não era, de todo, dogmática ou facciosa. Não fechava portas, abria. Eu sabia que por apoiar alguém de esquerda não era expulso de casa ou deserdado (como aconteceu com algumas pessoas, de outras famílias). Ir à Festa do Avante! tocar também foi um momento interessante. Em 1988, com o Mário Laginha. “Vai tocar à festa do PCP?” Aí acharam menos graça. Era o PCP.

A sua família foi expropriada no pós-25 de Abril?
Não. Viveu esse período com receios. O meu pai tinha uma empresa e passou maus bocados, mas os trabalhadores gostavam dele. O meu tio-avô Augusto Abreu, que tinha a agência Abreu, teve de fugir do país. Era um grande coleccionador de arte.

Pessoa importante na sua história?
Importante enquanto mecenas. Foi graças a ele que fui para Salzburgo, que tive o meu primeiro piano de cauda.

Era um investimento emocional, além de material, no seu sobrinho querido?
Não era sobrinho querido, era sobrinha querida, a minha mãe. O que a minha mãe pedia ele dava.

O dinheiro vinha mais desse tio do que do seu pai?
Sim.

Isto veio a propósito da sua participação na Festa do Avante!
As resistências foram maiores porque era o PC. Mas nunca houve situações de ruptura. Nunca tive necessidade de cortar o cordão umbilical e dizer: “Agora, vou ser eu.” A Agustina dizia: “É muito perigoso ir contra a nossa educação.” Não havia razão para ser contra.

O que é que teve de sacrificar?
Nada. Nada que me faça dizer: “Perdi isto.”

Um pianista com uma carreira como a sua tem uma vida de atleta de alta-competição? É fundamental a disciplina. Não só física como emocional. Como se treina estes dois músculos? Como é que uma pessoa não se vai abaixo?
Vai-se. Vai-se. Até se vai mais abaixo. Porque se mexe sempre com esse lado. As obras que estamos a trabalhar vivem connosco como se fossem pessoas. As obras que vou tocar na Casa da Música estão comigo sempre. Como não preciso de passar muitas horas a fazer exercícios, posso dar-me ao luxo de estar muitas horas com a música.

Quantas horas passa, em média, por dia, com a música? Partamos do concreto. Quanto tempo exige a preparação de um concerto como este da Casa da Música?
Quantas horas para chegar aqui e tocar isto? Ui. Muitas. A obra de Bach que vou tocar toquei-a há 25 anos e nunca mais a toquei. A de Liszt é nova. A de Ligeti e a de Lopes-Graça são novas. Nunca fiz as contas, mas entre 500 e mil horas estão em cima destas obras.
O ideal é estas horas todas serem feitas no ano anterior e no mês anterior não ter de trabalhar muitas horas. Há tempos diferentes; há o da decifração da obra (saber que dedo ponho em cada nota), há o entender, o analisar, o experimentar (toco mais rápido, toco mais lento, o que é que isso implica). A seguir tento esquecer e voltar a ser criança, olhar para a obra fingindo que nada disto existiu. E depois há o tocar sem estar a treinar. Quase simulo o concerto no estúdio, e aí tento dominar a emoção.

O que é que acontece se na véspera tiver uma zanga com a sua mulher?
Não mexe nada. Quando vou para aquilo, vou para aquilo. Eu digo que não tenho, mas se calhar tenho essa devoção, essa entrega, que me faz estar só naquilo. Pode cair o mundo ao lado.

Não existe de facto correspondência, ou contaminação, entre o seu estado emocional e a maneira como toca?
Não. É a música que define o meu estado emocional naquele momento. Não é o meu estado emocional que define a música. E cada peça tem uma vida própria.

Então vai dizer-me que tocar na Casa da Música, pela primeira vez, e tocar no Porto dez anos depois do jejum a que se obrigou, emocionalmente, não mexe consigo?
Tento que não esteja lá. O público dará mais importância a isso do que eu. A música não tem culpa dessa história. Claro que para mim também é importante. Mas espero só pensar nisso depois. Senão interfere e vou ficar muito nervoso, assustado.

Nas fotografias de criança, ao piano, parece muito compenetrado. Mas nunca assustado. Tem uma cara fechada quando toca. Ao contrário da sua expressão cá fora, muito sorridente e expansiva.
Sim. Estou fechado em mim. Está tudo aqui [aponta para cabeça e ouvido].

Brahms escreveu um Requiem para a mãe.
Um Requiem profano. Chama-se Requiem Alemão.

Apesar de ser um Requiem, parece uma peça luminosa e não soturna. Quando a sua mãe morreu...
Os meus pais morreram num [intervalo de] ano e meio. Depois, morreu a minha irmã. Foram perdas importantes nos últimos tempos. A minha mãe, que morreu há um ano, fez confusão e achava que este recital era no ano passado. Achava que ia aguentar não morrer e ouvir-me aqui. Quando percebeu, ficou muito triste. “Ah, é para o ano. Já cá não estou.” Estava doente, na cama. A obra de Liszt que vou tocar ia estudá-la para casa dos meus pais, para ela ouvir. A minha mãe adorava aquela obra.

Simbolicamente, a sua mãe está na peça de Liszt. Por isso é que a escolheu?
Não. O programa já estava definido antes de ela adoecer e antes de a tocar para ela. É uma obra pouco conhecida, chama-se Bênção de Deus na Solidão. Acompanha-a um poema que fala de um homem que a meio da idade se limpa de tudo e volta a renascer. Sim, ela vai estar nessa obra, quer eu queira, quer não.

Chora ao tocar?
Não.

Nem em casa, sozinho, a tocar uma peça como essa, com essa carga simbólica?
Raramente. Choro muito raramente. Faz muitas perguntas a que não sei responder.

E uma peça que represente a vida e o futuro, ou seja, os seus filhos?
[riso] Não sei associar. Os meus filhos... quero que eles sejam muito felizes.

Tocam algum instrumento?
A Júlia toca violoncelo e o Ricardo piano. Tem oito anos.

Corajoso.
Pois. Eu só digo mal. “Pai, não quero tocar para ti porque só criticas.” O elogio não serve para nada. O que serve é a crítica. Quando não fazemos mais do que a nossa obrigação, não merecemos elogios.

Quer dizer mais alguma coisa? Não falámos de Rui Rio.
Que bom. Não é assunto que mereça ser falado.

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