Kristoffer descobriu em Lisboa uma vida em fotografias e está a fazer dela um filme

Em 2005 um sueco descobriu 300 diapositivos no lixo, na Praça das Novas Nações. Intrigado pela vida ali contida, a de um casal que muito viajara por Portugal e pelo mundo, tomou a decisão de lhe dar nova existência. Há um filme a nascer.

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Kristoffer Sandberg quer inscrever-se na vida das fotografias que encontrou
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Ao meio a mulher que aparece em algumas das fotos encontradas
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Desconhecido, presumível autor da maioria das fotos encontradas
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Évora numa das fotos encontradas
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A aldeia de Monsanto
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Os diapositivos encontrados passam por várias cidades, vilas e aldeias portuguesas, bem como por vários países mundo fora
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Os diapositivos encontrados passam por várias cidades, vilas e aldeias portuguesas, bem como por vários países mundo fora
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Os diapositivos encontrados passam por várias cidades, vilas e aldeias portuguesas, bem como por vários países mundo fora

“O meu nome é Nuno Ferreira e esta foto foi tirada na minha aldeia”. A frase é dita com o sotaque carregado de quem, falando português, não o tem certamente como primeira língua e a voz surge enquanto a imagem nos mostra um largo que, saberemos mais tarde, pertence a Évora. Um telheiro centrado, um cão algures à direita, um homem à esquerda, escondido na sombra, ao lado de um portão antigo de séculos acoplado a torre igualmente antiga.

A imagem não é actual. A voz de Nuno Ferreira é (mas Nuno Ferreira não existe). O homem de sotaque carregado chama-se Kristoffer Sandberg, sueco de 30 anos nascido na pequena cidade de Borås que, certo dia, caminhando por Lisboa enquanto por cá estudou, descobriu um tesouro que alguém deitara fora. Diapositivos. Muitos. Quase trezentos. Uma vida em diapositivos. Foram registados por um casal entre 1962 e 1975, não só em Portugal como em muitos outros países: de Angola à Nova Zelândia, de Moçambique à Riviera francesa.

Em 2005, quando os descobriu espalhados pelo chão na Praça das Novas Nações, sentiu-se obrigado a guardá-los. Quatro anos depois, estudante da Escola de Cinema de Gotemburgo, sentiu-se numa encruzilhada, incerto sobre o rumo que queria dar à sua vida. Regressou aos diapositivos que guardava e a que voltava regularmente, curioso e intrigado perante o que escondiam. “Questionava para onde me encaminhava e senti que podia usar as fotos para, de alguma forma, contar a história da minha procura por um sentido”, conta numa esplanada da Costa do Castelo.

“Deram-me algo por onde começar. Olhei para isso como um sinal que a minha missão era seguir essas pegadas”. Não ouvimos estas últimas frases na Costa do Castelo. Descobrimo-las no trailer de The Hermit [O Eremita], primeira apresentação de um filme que ainda não existe. O filme de um sueco que descobriu uma vida espalhada pelas ruas de Lisboa, esquecida, e que decidiu procurá-la, recriá-la, para se descobrir a si mesmo.

Não sabe quem são as pessoas ali retratadas e não sabe se descobrirá que homem é aquele a quem chamou Nuno Ferreira, ou quem é a mulher que o acompanha. Isso, porém, não o obceca. Kristoffer, que partiu ontem para a Suécia depois de algum tempo a trabalhar no projecto em Portugal (regressa já em Dezembro), confessa: “Procurar o casal talvez seja apenas uma desculpa para trabalhar a minha própria procura”. Os seus planos? “Ir a todos os lugares fotografados em Portugal e procurar mais que um momento congelado no tempo. Ver para além da imagem fixa de há cinquenta anos. Se o casal surge em frente a uma casa, conhecer quem vive nessa casa. As fotos têm vida, representam vida e esse é um objectivo do filme. Coleccionar vida”.

Em 2009, Kristoffer decidiu que os slides seriam a base da sua primeira longa-metragem. Entusiasta do realizador Chris Marker pela forma como este trabalha com fotografia, dando-lhe som e movimento, e influenciado por realizadores suecos como Carl Johan de Geer ou Eric M Nilsson, “nada interessados na estrutura narrativa cinematográfica tradicional”, imaginou um filme indefinido entre o documentário e a ficção. Candidatou-se a um apoio do Svenska Filminstitutet [Instituto do Cinema Sueco], recusado por se situar numa terra de ninguém – “queriam um género cinematográfico específico”. Entretanto, mudaram os dirigentes do instituto e ele tentou novamente. Ganhou o apoio apenas para assistir à chegada da crise económica à Suécia – e lá foi se foi o financiamento. Decidiu-se por uma mudança radical. Durante dois anos, andou embarcado a receber formação para se tornar comandante em alto mar. “Continuava a querer fazer o filme e pensei que aquela seria uma forma de ganhar dinheiro para o conseguir”. A formação duraria três anos, mas Kristoffer abandonou-a antes de a concluir. "Comecei a pensar se não seria um desvio demasiado grande para chegar ao que queria”. Enquanto se questionava, reabriram os concursos no Instituto do Cinema. “À terceira consegui”. Os diapositivos perdidos iriam mesmo transformar-se num filme.

Kristoffer recorda o dia em que os encontrou, alguns espalhados pelo chão, os restantes arrumados em dois sacos de papel. Não é incomum acontecerem coisas assim a este homem alto e magro, de olhar melancólico. “Talvez por culpa da minha má postura, estou constantemente a olhar para o chão e a encontrar coisas”. Naquele dia, o pavimento da rua estava coberto delas, de coisas. E ele ia pegando nos diapositivos e apontava-os ao sol para perceber que fotografias estavam ali, enquanto se sentia “quase paranóico”, receoso que alguém surgisse sabe-se lá de onde e lhe roubasse o “tesouro”. Ao mesmo tempo, foi invadido por uma sensação de tristeza. “Eram momentos que, em algum período, foram importantes na vida daquelas pessoas e agora estavam na rua. Vi-me com aqueles dois sacos de papel nos braços, aquela família, e levei-a para casa. Não a podia deixar ali”.

O que nos mostram as três centenas de fotografias? Muitas fotos de fauna dos quatro cantos do mundo. Neve nos glaciares da Nova Zelândia, pôr-do-sol laranja em Moçambique, as cataratas de Victoria Falls, ou um “jantar em casa dos Sousa” em Sidney. E passagens por Cascais, Cabo da Roca, Guarda, Castelo Branco, Monsanto, Vila Viçosa, Serra da Estrela ou pela Praia da Consolação. Entre elas, um homem de aspecto distinto no seu casaco e sobretudo castanho, cabelo grisalho oferecido ao vento (o “Nuno Ferreira” de Kristoffer); e uma mulher mais jovem, lendo um jornal em casa, sorrindo bem protegida do frio no topo de um monte de neve; sorrindo mais ainda, olhando directamente a lente fotográfica, ao volante de uma lancha avançando mar dentro. Kristoffer julga que a ela seria enfermeira (foi o que lhe disseram ao verem uma foto em que surgia com uma bata branca). E os seus amigos portugueses sugerem que o homem poderia ser diplomata ou alguém ligado ao exército, dado que muitos com tais profissões habitavam à époça a então chamada Praça do Ultramar. 

Certo é que se tratam de “fotos turísticas simples": "A mulher que posa frente a um monumento ou uma paisagem para afirmar ‘estivemos aqui’”, descreve. “Mas se olharmos mais de perto”, acentua, “descobrimos sempre coisas intrigantes”. Foi isso que o foi levando novamente àqueles diapositivos. Que voltas terá dado a vida do Nuno Ferreira que não se chama Nuno Ferreira? É isso que interessa a Kristoffer. Mas não só. Quer partir daquele percurso que tem rostos mas não tem nomes verdadeiros e uma história definida para, através dele, descobrir mais vida.

A visita à Torre do Tombo com o único nome inscrito nas fotos, que Kristoffer duvida que seja verdadeiro (Marias há muitas, o apelido Leuixa, se existe, nunca o ouvimos), foi infrutífera. Tal como as entrevistas que vem fazendo à volta da Praça das Novas Nações. Infrutífera não é, porém, a palavra correcta. “A procura é mais importante que o objectivo”, dirá mais que uma vez Kristoffer. Abriu um grupo no Facebook, sob o nome "eremita procura-se", para tentar recolher informação e, antes disso, já seguira as fotos até à Guarda e por ali andou a tiritar de frio – um sueco a tiritar de frio em Portugal, quem diria? E encontrou na Praça das Novas Nações um homem que contrapôs às fotos idílicas no Moçambique da década de 1960, a sua passagem pelo mesmo país, pela mesma altura. Enquanto soldado destacado para a Guerra Colonial, a sua experiência nada teve de idílico.

Kristoffer pretende mostrar como estamos constantemente a deparar-nos com encruzilhadas e mudanças de caminho. “Muita gente já teria visto os diapositivos quando passei por eles, mas viram-nos apenas como lixo. Isso acontece-nos constantemente. Acho que devemos parar mais, esgravatar, procurar, descobrir”. Ao ver os diapositivos um a um, ao revê-los e ao ganhar familiaridade com aquelas pessoas e com aquelas paisagens, Kristoffer foi-se impressionando com uma evidência: “a de quão curta e vulnerável é a nossa vida”

 Que marcas deixamos verdadeiramente?, questionava-se enquanto via as imagens de uma vida preenchida que “desaparecera” em dois sacos de papel, convicto de uma coisa: “ao ficcioná-la, porém, ela ganhará nova existência”. Esse é agora o trabalho de Kristoffer Sandberg. Transformar-se em Nuno Ferreira até que Nuno Ferreira apareça. Ou melhor, até que apareça o homem que tanto fotografou ou aquele que Kristoffer Sandberg construirá agora, viajando país fora em busca do que está para lá dos diapositivos da Praça das Novas Nações.
 
Corrigido às 14h04: O largo referido no primeiro parágrafo e identificado na galeria de fotos não está localizado em Vila Viçosa, mas em Évora.
 
 
 
 

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