Um vaivém de memórias e uma vida de lutas que se contam no palco

Estalo Novo, quarto espectáculo da Companhia Maior, com direcção artística de Ana Borralho e João Galante, estreia-se hoje no CCB.

Foto
O espectáculo Estalo Novo Bruno Simão

“Esta é uma peça feita de realidade, não tenham medo de dizer as coisas.” São estas as últimas indicações que se ouve a directora artística Ana Borralho dar antes de arrancar mais um ensaio de Estalo Novo, que se estreia hoje, às 21h, no Centro Cultural de Belém (CCB). Numa outra peça, aquelas 14 pessoas em palco, que ouvem estas palavras, seriam actores, mas aqui, neste espectáculo, são apenas elas próprias. Quando Ana Borralho diz que esta é uma peça feita de realidade, é mesmo isso que quer dizer, e nunca a Companhia Maior, composta por pessoas de mais de 60 anos, fez tanto sentido. Estas pessoas não estão a ser mais ninguém além delas, nem estão a contar outras histórias que não as suas. É um vaivém de memórias que tão depressa nos transportam para o tempo em que pouco ou nada se podia dizer ou fazer, como nos trazem de volta para os dias de hoje.

E não são dias assim tão diferentes. Ou não são angústias assim tão diferentes. Quando, em 1974, estas pessoas assistiram ao 25 de Abril e à celebração da “Liberdade”, não imaginavam que também hoje tivessem de dar corpo e voz à luta. É outra luta, é certo, mas é uma luta. E não é por acaso que, num momento do espectáculo, todos pedem em uníssono desculpa, ao Presidente da República, ao primeiro-ministro e à ministra das Finanças, por ainda estarem vivos. E garantem: “Faremos todos os nossos esforços para continuarmos vivos”.

“Não só quisemos que o público reflectisse sobre o momento em que vivemos e sobre a forma como chegámos até aqui, como também procurámos mostrar a estas pessoas [aos actores] que ainda têm voz e que ainda é possível fazerem muita coisa”, diz ao PÚBLICO Ana Borralho, destacando a forma como os mais velhos são tratados na sociedade actual. “São postos de lado, parece que é mais fácil matá-los logo, não é?!”

É por isso mesmo que o nome do espectáculo, Estalo Novo, ao mesmo tempo que quer provocar algum tipo de reacção em nós, nos remete para o tempo do Estado Novo, aquele sobre o qual já ouvimos tantas histórias. Mas afinal ainda há mais. Há mais histórias para serem contadas, há mais experiências para serem partilhadas.

“Eles tiveram o privilégio de chegar até aqui e por isso só eles nos podem contar o que viveram. Esta é uma experiência que não temos”, diz Ana Borralho, que, com o seu parceiro de sempre, o director artístico João Galante, criou o espectáculo, que está em cena até domingo, dia 1. “Embora a máscara de hoje seja diferente, há preocupações e situações muito semelhantes àquelas que enfrentaram no passado”, explica a criadora, para quem estas pessoas “provavelmente nunca pensaram que as coisas dessem a reviravolta que estão a dar”. “Parece que não sabemos muito bem para onde vamos e eu sinto que eles também sentem esta preocupação”, continua Ana Borralho.

Um a um, vão contando a sua história, num ritmo por vezes frenético, como se estivessem a disputar aquele espaço no palco, aquele momento de atenção. Todos querem falar, todos têm coisas para dizer. Tantas coisas. Tantas palavras. Algumas delas soltas, que davam hoje para serem escritas em cartazes a empunhar numa qualquer manifestação contra o Governo, por exemplo. E as histórias são díspares. Algumas tão pessoais e outras tão colectivas.

Tudo começa com Iva Delgado. É ela quem dá o primeiro estalo quando nos leva para a Avenida da Liberdade naquele dia [muitos anos antes de 1974] em que se gritava: “liberdade, liberdade, liberdade”. Ela estava com o pai e só se questionava como é que é uma guerra podia ter acabado sem que ela tivesse dado por isso. Mas o pai disse-lhe então que “a guerra nunca acaba”. O pai era Humberto Delgado, o “General Sem Medo”, homem que tantas guerras travou durante a sua vida. Ele sabia do que estava a falar, assim como Iva hoje sabe que o pai tinha razão. Cristina Gonçalves confirma-o. No mesmo palco diz aos espectadores que é do tempo da guerra colonial mas também do tempo da guerra química da Síria.

“Algumas histórias que estas pessoas partilharam inicialmente connosco até já as tínhamos ouvido aqui ou ali, mas o detalhe com que nos contaram foi uma novidade”, diz João Galante, afirmando que, para algumas pessoas, foi difícil mergulhar nestas memórias antigas. “Houve até quem tivesse desistido, por não conseguir estar sempre a lembrar um determinado episódio”, lembra o criador, explicando que, quando foram convidados para pensarem num espectáculo para a Companhia Maior – o quarto desde 2010, quando foi criada –, souberam desde logo que queriam trabalhar “sobre as vivências destas pessoas, que viveram o Estado Novo já maiores de idade”. “É sempre importante para nós fazer peças que sejam pertinentes no tempo em que vivemos”, diz João Galante.

Depois desta ideia, a dupla recorreu à ajuda de Rui Catalão, que deu apoio dramatúrgico ao espectáculo e preparou um inquérito para os actores da Companhia Maior. “Quisemos aprofundar o tema da desobediência, qual é que tinha sido a maior desobediência que tinham cometido, qual a desobediência que se arrependiam de não ter cometido e qual a maior desobediência colectiva a que tinham assistido, e assim se começaram a contar histórias”, lembra João Galante.  

O nome do espectáculo, Estalo Novo, foi pedido emprestado ao controverso artista urbano Mais Menos, que já fez coisas como jogar golfe com pão em frente à Assembleia da República ou enterrar Portugal numa cerimónia fúnebre em Guimarães. Pelo meio da peça, aparecem muitas palavras de ordem suas.

Sugerir correcção
Comentar