É hora de voltar a amar a Banda do Casaco

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Durante as décadas de 1970 e 1980, a Banda do Casaco produziu disco espantoso e inclassificável atrás de disco espantoso e inclassificável

Pela primeira vez pode-se completar a discografia da Banda do Casaco em CD: duas caixas reúnem tudo o que eles editaram e ainda junta um DVD e um CD com actuações ao vivo, além de três livros. Um luxo digno de um dos maiores mitos da música portuguesa

Não eram nem um projecto de estúdio nem uma banda ao vivo, mas uma entidade mutante que nunca sabia que passo ia dar em seguida, e não só criaram uma das mais extraordinárias discografias portuguesas como se tornaram um mito. E não sabemos, ainda hoje, peva da Banda do Casaco.

“Eu sei que isto é tudo muito estranho”, diz, ao fim de um par de horas de conversa, Nuno Rodrigues, completando de seguida: “Mas eu sou um gajo estranho”. E, confissão feita, puxa do enésimo cigarro e faz uma pausa no seu longo monólogo, como se tivesse acabado de aperceber-se dessa evidência pela primeira vez. Mas não precisava de o afirmar: nunca nos ocorreu que fosse de outra forma.

Nuno Rodrigues é o compositor e líder da Banda do Casaco, uma trupe de gente que durante as décadas de 1970 e 1980 produziu disco espantoso e inclassificável atrás de disco espantoso e inclassificável, deixando um rasto de mistério atrás de si.

Mistério porquê? Ora bem, quem hoje for à Wikipédia consegue saber a discografia essencial da Banda do Casaco e meia-dúzia de factos relevantes. Mas antes de haver Wikipédia pouca gente sabia qual a exacta discografia da Banda do Casaco, que músicos fizeram parte da banda. Isto é: ninguém sabia quase nada da banda.

Na prática os discos nem sequer estavam disponíveis: Hoje Há Conquilhas Amanhã Não Sabemos só há uns anos foi editado em CD (e ripado directamente do vinil);Contos da Barbearia nunca vira edição em CD até hoje, data em que sai cá para fora uma dupla caixa com tudo o que a Banda do Casaco gravou; e os restantes álbuns foram reeditados, sim, mas com tão pouco cuidado que se perderam. Ao longo de todos estes anos era literalmente impossível entrar numa loja de discos e encontrar a discografia da banda, quanto mais aceder a informação fidedigna sobre eles.

Para terem uma ideia de como os mitos se constróem: na década de 1990, quando a Internet era coisa que só servia para unir os centros de tecnologia das universidades, não havia Google que nos explicasse que cassetes eram aquelas de uma tal Banda do Casaco que passavam de mão em mão entre os melómanos. Um ou outro mais amalucado dizia mesmo ter um tio ou um primo que possuía um vinil da banda, o que, invariavelmente, fazia dele um sujeito invejável.

Contava-se que haviam nascido das cinzas dos óptimos Filarmónica Fraude, mas era impossível ter certeza. Dizia-se que Cândida Branca Flor e Né Ladeiras cantavam nos discos. Que Carlos Zíngaro e Carlos Barreto andavam por lá e dezenas de músicos haviam entrado na banda. Dizia-se que tocavam instrumentos tão estranhos como garrafas de vidro ou sacos de feijão. Não fazíamos ideia — não havia forma de saber. Tínhamos cassetes, às vezes encontrávamos um CD numa estação de serviço (história verdadeira). Era tudo.

Pois isto, que é de facto estranho e uma grande confusão, vai mudar. Porque de uma assentada a Companhia Nacional de Música (editora de Nuno Rodrigues) resolveu lançar não só um best of (conceito caricato numa banda tão estranha) como duas caixas com tudo o que o grupo produziu, acrescido de um DVD e um CD com algumas das escassas actuações ao vivo, além dos libretos completos (com letras e músicos e instrumentação) e de um livrinho escrito por Nuno Rodrigues (a sua explicação da banda, por assim dizer), outro com recolhas de críticas e ainda um terceiro da autoria do jornalista Nuno Galopim. Um documento completo que permite perceber em absoluto a Banda do Casaco.

Bem, em absoluto não. Ao fim e ao cabo estamos a falar de uma banda que, segundo Rodrigues, “não era nem um projecto de estúdio nem uma banda ao vivo”. Então era o quê? “Era um conjunto de projectos e nunca sabíamos o que vinha a seguir. Quer dizer, passaram mais de 50 músicos pela banda. E só assim funcionava: se tivéssemos tido uma formação fixa não tínhamos durado dois discos.”

Desalinhados

A Banda do Casaco nasceu da junção de duas bandas: os Plexus, onde tocavam Nuno Rodrigues (guitarra) e Celso Carvalho (violoncelo e contrabaixo), e a Filarmónica Fraude, onde tocavam António Pinho (letras e voz) e Luís Linhares (teclas). Os membros dos dois agrupamentos não se conheciam entre si. “Foi o Rui Neves, um tipo do jazz, que nos pôs em contacto”, conta Rodrigues, o responsável por estas reedições. “Ele sugeriu o António Pinho para fazer letras e eu liguei-lhe sem o conhecer”.

De imediato resolveram iniciar um projecto musical. Além dos músicos acima mencionados, Rodrigues trouxe ainda Carlos Zíngaro (violino), Julie Brennan (voz e desodorizante em spray) e Helena Afonso (voz e desodorizante em stick), entre outros. A distribuição do poder interno ficou de imediato estabelecida: Rodrigues tornou-se o compositor de quase todos os temas da banda, Pinho foi o letrista durante sete anos.

O método era simples: “Eu fazia a cama”, diz Rodrigues, “depois convidava os músicos a deitarem-se nela”. A cama era a base sonora: “Uma harmonia, pelo menos três ou quatro acordes, qualquer coisa. Sei lá: podia pegar no Vira e tocar as notas ao contrário e partir daí”. A estranheza sonora tem a sua origem na afinação da guitarra de Rodrigues: “Em vez de dois Mis eu usava três Rés, uma afinação que hoje em dia encontras no William Tyler a solo [guitarrista dos Lambchop e dos Silver Jews, entre outros]”. Os improvisadores eram, literalmente, quem estivesse à mão. “Os únicos elementos que estiveram presentes do princípio ao fim fui eu, o Celso e o Zé Fortes [produtor]”, diz Rodrigues, que reconhece que para muita gente a Banda do Casaco era ele e António Pinho, graças ao poder lírico deste.

O primeiro álbum, Dos Benefícios Dum Vendido No Reino dos Bonifácios, de 1973, pode ser caracterizado como rock progressivo, ou sinfónico, mas não é nada disso, é ainda mais estranho: “Era para ser uma ópera. Enche-me as medidas até hoje”. Rodrigues afiança que desde o princípio o que movia a banda era o experimentalismo. “Eu comprei instrumentos para os usar em disco e usei-os sem nunca os saber tocar.”

Para se ter uma ideia de como a Banda do Casaco funcionava, Rodrigues conta uma história que se passou na época da gravação do primeiro disco. “Eu andava nos ensaios no Louisiana [um bar onde ensaiavam] e de vez em dava boleia a uma tal Cândida Soares. Ela começou a trautear lá atrás e gostei do timbre dela. E nesse dia tinha começado a fazer umas músicas e disse-lhe para cantar. E ela entrou para a banda, mas depois foi o que se sabe”. O que se sabe é isto: Cândida Soares tornou-se Cândida Branca Flor e acabou por deixar a banda para se tornar um sucesso popular. Ainda assim, participa no óptimo Coisas do Arco da Velha, de 1976.

Coisas do Arco da Velha é um disco muito diferente de Bonifácios. Neste havia um pendor medieval que vinha dos Música Novarum, uma banda anterior de Rodrigues. (Esses e outros temas anteriores à Banda do Casaco estão reunidos num CD chamado Origens, incluído na caixa.) Essa influência vem da avó do compositor, nascido em 1949. “Ela era música e tentou ensinar-me o mais que pôde. Por causa disso comecei a fazer música em 1965, no Liceu Camões, a tocar coisas dos Kinks e dos Beatles, mas depois virei-me para a música provençal e para a música medieval.”

Com o 25 de Abril tudo mudou: “Nessa altura enfiei-me nas recolhas e na música tradicional. Comecei em 1975, na altura das campanhas de dinamização cultural. Valha a verdade, eu não dinamizava nada — queria era que os velhotes me ensinassem canções”. Essas recolhas marcam muito Coisas do Arco da Velha — que pode ser considerado um predecessor de gente como os Diabo na Cruz ou B Fachada.

Por esta altura a banda havia recolhido imenso sucesso crítico, com os álbuns a serem considerados discos do ano em várias publicações. Mas estavam longe de ser consensuais: “Nós éramos mal vistos porque não alinhávamos nem com a esquerda nem com a direita e aquela era uma época muito engajada. Mas nós estávamos a leste. Quer dizer, em 1975, só para provocar, eu dizia nas entrevistas: ‘Nós somos burgueses’. Mas não faço ideia se o resto da malta era burguesa ou não. Sei que tive muita sorte em encontrar o Pinho, que era um tipo não engajado com nada, totalmente livre”.

Manias estranhas

O não engajamento e o experimentalismo (além da mudança sonora e de ensemble a cada disco) não eram as únicas idiossincrasias: entre muitas outras manias estranhas, a banda quase nunca tocou ao vivo. “Nos 11 anos em que estivemos em actividade demos 11 concertos, salvo erro.” É por esta altura que Rodrigues confessa a frase acima citada: “Eu sei que isto é tudo muito estranho. Mas eu sou um gajo estranho”.

Estranho, mas ainda assim um gajo da música: em 1978 trabalhava na Valentim de Carvalho e lançou Variações. Mais tarde teve a Transmédia e a MVM, onde editou o catálogo da 4AD, da Creation e bandas como os Violent Femmes, os Morphine ou os Tindersticks.

“As minhas editoras foram sempre grandes alhadas, estava sempre com problemas de dinheiro. E quando há filhos e empregados as coisas tornam-se mais complicadas e a banda sofreu com isso. Parou por causa disso.”

Mas antes de parar ainda houve tempo para Hoje Há Conquilhas Amanhã Não Sabemos, de 1977, que considera “o disco com mais potencial”; Contos da Barbearia, de 1978, que ele “pensava que era o mais fraco, mas depois tem o Malfamagrifada e o Retrato d’homenzinho pequenino com frasco, que são dois temas extraordinários”; No Jardim da Celeste, de 1980, “em que já havia tensões entre [Rodrigues] e o António Pinho”; Também Eu, de 1981, que “para muita gente é o melhor disco da banda” e que Rodrigues sente como o seu “disco da libertação em relação aos textos”, em virtude da saída de Pinho; e o famoso Com Ti Chitas, de 1984, odiado por muitos, mas que para Rodrigues foi o “realizar de um sonho, de ter um disco com uma voz verdadeiramente popular” — Ti Chitas era uma pastora que até aos 50 e tais anos nunca aprendera a ler.

A partir de 1984 nunca mais houve discos da Banda do Casaco, pelo menos publicamente, porque eles voltaram a gravar — em 1986 e uma última vez em 1993, com Rodrigues, Celso, Né Ladeiras e António Emiliano.

“A Banda do Casaco nunca acabou”, confessa já em fim de conversa Nuno Rodrigues. “Aliás, eu nunca percebi que a Banda do Casaco não ia voltar. Claro que quando o Celso morreu... era muito difícil continuar sem ele. Mas a banda é mais consensual hoje do que antigamente e enquanto houver Zé Fortes haverá Banda do Casaco.”

Palavra de auto-apelidado maluco que anda outra vez a escrever canções. Maluco genial, dizemos nós.

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