Ucranianos querem ser da União Europeia, mas a Rússia ganhou

Foi a maior manifestação em Kiev desde a Revolução Laranja. Mas em Bruxelas a "derrota" é dado adquirido – perdeu-se a Ucrânia para Putin.

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Houve bandeiras da UE em Kiev, mas a Rússia ganhou Gleb Garanich/Reuters

A Ucrânia perdeu uma guerra e a população não gostou. Perto de 100 mil pessoas estiveram nas ruas de Kiev, a capital do país, para gritar o seu descontentamento com a decisão do Governo de cancelar os acordos previstos com a União Europeia (UE), regressando à influência de Moscovo que tenta reconstruir o seu espaço de acção da era soviética.

“Abaixo o gangue”, disseram os manifestantes que levaram bandeiras da UE, da Ucrânia e outras com a cara da antiga primeira-ministra pró-ocidente, Julia Timochenko. Foi uma manifestação marcada pela oposição, que desde quarta-feira, quando o cancelamento da associação à UE foi conhecida, preparava uma revolta popular. A carta que Timochenko escreveu ao Presidente Viktor Ianoukovitch na sexta-feira foi o momento catalizador do descontentamento.

“Pensa que pode continuar a fazer bluff e a fazer chantagem?”, perguntava na carta Timochenko, que cumpre uma pena de prisão de sete anos por abuso de poder — assinou contratos de fornecimento de gás que foram considerados prejudiciais para o país; a opositora diz que o seu julgamento foi uma “vingança” política de Ianoukovitch.

Viktor Ianoukovitch, escreveu Timochenko na prisão — a carta foi divulgada pelo seu advogado — vai cometer “o pior erro da sua vida”. E na maior manifestação em Kiev desde a Revolução Laranja — após as eleições presidenciais entre Viktor Iushchenko e Ianoukovitch, os ucranianos rebelaram-se contra a manipulação eleitoral a favor do segundo, que acabaria por perder nesse ano —, o povo exigiu a demissão do Presidente.

A manifestação não foi pacífica. A concentração começou no parque Chevtchenko e progrediu em direcção à Praça da Liberdade, o centro da Revolução laranja de 2004/05. No percurso, fica a sede do Governo, protegida por um cordão polícial. O protesto quis aproximar-se e a polícia reagiu com bastonadas e gás lacrimogéneo — os manifestantes lançaram pedras.

A chantagem russa
Para uma fatia de ucranianos, a chantagem explica em parte a opção do Governo que deveria assinar uma série de acordos de cooperação com Bruxelas, o mais importante dele o de comércio livre com o espaço europeu. A cerimónia estava marcada para os dias 28 e 29 de Novembro, numa cimeira em que também a Geórgia e a Moldávia se vão comprometer com a União Europeia. Afinal, a Ucrânia optou por integrar, em breve, a União Aduaneira, o protocolo de comércio que a Rússia tem com países da sua periferia e que fizeram parte da antiga União Soviética.

A Rússia é o destino de “apenas” um quarto das exportações ucranianas, mas Kiev depende de Moscovo no campo da energia e a quebra dos laços entre os dois países mostrou-se impossível, apesar de o próprio Governo ter assumido que a Gasprom (a companhia russa) lhes cobra mais do que à Alemanha e à Áustria, também seus clientes. No passado, para forçar renegociações de contratos e preços, a Rússia chegou a cortar os fornecimentos à Ucrânia. E mais recentemente, com a aproximação da cimeira de Vilnius (onde os acordos com a UE seriam assinados), Moscovo suspendeu a importação de produtos ucranianos, argumentando que não correspondiam aos padrões de segurança exigidos.

No Verão, o Presidente russo, Vladimir Putin, foi a Kiev pressionar Ianoukovitch e dizer que os russos e os ucranianos são inseparáveis. Por isso, explicou, o seu lugar natural é na União Aduaneira, ao lado da Rússia, da Bielorrúsia e do Cazaquistão. O Presidente russo também falou nos laços culturais que unem os dois países e disse que a Ucrânia não deve perder a sua essência e identidade, que é naturalmente mais russa do que europeia.

A Ucrânia é um país dividido em duas metades, dizem os analistas que falam da parte ocidental e da parte leste do país. Essa fractura reflectiu-se nas sondagens que foram feitas sobre a viragem da Ucrânia para a Europa (UE e NATO) ou para a Rússia — em Abril, os dados do Instituto Razumkov, de Kiev, diziam que 42% da população era a favor da ocidentalização e 32% a favor do regresso “às origens”. Após a visita de Putin, os que são a favor da assinatura dos acordos com a UE aumentaram, 49%, segundo o jornal espanhol El País.

“Não se pode esperar uma relação de igualdade” entre a Ucrânia e a Rússia, disse na altura o Presidente Ianoukovitch. “Desde que assumiu a presidência em 2010, o Presidente tentou encontrar um equilíbrio entre o fortalecimento da integração da Ucrânia na Europa e a manutenção de uma relação positiva com a Rússia. Também tentou evitar escolher entre a UE e a Rússia. Falhou”, considerou Steven Pifer num artigo para a Brookings Institution. “Kiev tentou manter a decisão [da assinatura dos acordos com a UE] à margem da decisão de pender geopoliticamente para Ocidente ou Oriente. Mas Moscovo sempre olhou para a questão em termos geopolíticos. A aproximação da Ucrânia a Ocidente foi vista pelo Kremlin como uma perda signigicativa para a Rússia, que tenta reconstruir a sua esfera de influência no espaço soviético”, referia Pifer, que foi embaixador dos Estados Unidos na Ucrânia.

Neste contexto, Putin não podia deixar a decisão apenas nas mãos dos ucranianos. Pressionou. E na guerra da influência, a Europa perdeu.

As negociações entre Kiev e Bruxelas foram difíceis e a fragilidade do lado ucraniano em sustentar o compromisso era perceptível — a questão Timochenko, a sua libertação e ida para a Alemanha para tratamento, que chegou a estar no topo das prioridades dos negociadores europeus, passou para segundo plano quando, na recta final, Bruxelas percebeu os efeitos da máquina russa, que começara a trabalhar em pleno.

Na quarta-feira, quando Kiev anunciou a ruptura, a chefe da diplomacia europeia, Catherine Ashton, disse estar “decepcionada, não só pela Europa mas também pela Ucrânia”. Os ucranianos manifestaram-se em Kiev, mas não se adivinha uma mudança. Viktor Ianoukovitch vai contar com o apoio de Moscovo para a reeleição, em 2015. Como disse à Reuters uma fonte da UE em Bruxelas, a “chantagem” de Putin funcionou. A Ucrânia está perdida — é “uma derrota europeia”.
 
 
 
 
 

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