Diamantes de sangue são só os de uma zona de guerra ou também os de um Estado corrupto?

Nem só as pedras preciosas que financiam guerras em África devem ser impedidas de chegar ao mercado. As que financiam governos corruptos também devem ser barradas, defendem várias ONG.

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Mineiros que recorrem a técnicas artesanais em busca de diamantes na Serra Leoa Finbarr O'Reilly/Reuters

O Processo de Kimberley permite que todos os diamantes sejam marcados para que se conheça a sua história, desde a origem até chegar ao anel no dedo de alguém. Nasceu há dez anos, para acabar com os “diamantes de sangue”, vendidos para financiar guerras em África – mas as organizações não-governamentais (ONG) reclamam a necessidade de alargar o conceito, porque também os Estados violam os direitos humanos. Mas com a China na presidência do Processo de Kimberley no ano que vem e Angola como vice, são poucas as possibilidades de mudança.

“A China compromete-se a manter a integridade do Processo de Kimberley, a manter a sua credibilidade e melhorar o seu nível de aplicação”, afirmou Wei Chuanzhong, actual vice-presidente da organização, numa declaração escrita à AFP, durante a reunião anual daquela entidade, que termina esta sexta-feira em Joanesburgo – a África do Sul assume este ano a presidência rotativa da organização.

Este Processo, que permite que o percurso de todos os diamantes seja identificável, desde a origem até ao comprador final, foi lançado em 2003, na sequência da resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas 55/56, que aprovou as recomendações do Relatório Fowler, que detalhou em 2000 como a UNITA conseguia usar a exploração dos diamantes para financiar a sua guerrilha em Angola. No Processo Kimberley participam 80 países, produtores, transformadores e comerciantes de diamantes e ONG, com o objectivo de garantir que não entram no mercado de diamantes cuja comercialização permita financiar conflitos.

Mas a ONG Global Witness saiu do Processo de Kimberley em 2011, para denunciar a complacência que a organização tem relativamente ao Zimbabwe – um país que foi autorizado a voltar a vender os seus diamantes, após anos de interdição, por causa do regime de Robert Mugabe. Na “segunda semana de Dezembro”, os diamantes do Zimbabwe devem regressar à praça de Anvers, disse a delegação do Zimbabwe à AFP, após terem sido levantadas também as sanções a este comércio impostas pela União Europeia.

As minas de Mugabe

A Global Witness suspeita, no entanto, que o Presidente Robert Mugabe continua a financiar o seu partido, a ZANU-PF, através de lucros com a venda de diamantes – embora durante os anos de embargo das praças europeias tenha tido de recorrer a locais onde não conseguia obter preços tão altos, como o Dubai ou Bombaim, disse à Deutsche Welle Emily Armistead, desta ONG britânica. E em 2008 houve o caso das minas de Marange, onde 200 mineiros que trabalham com recurso a técnicas artesanais foram mortos a tiro por militares – relatado em 2011 por testemunhas à BBC, tanto mineiros como soldados.

Por ser tão polémico, o caso da reabertura dos mercados mundiais ao Zimbabwe que fez com que as ONG começassem a levantar mais a voz a exigir mudanças. As mais radicais afirmam que o Processo de Kimberley está a servir apenas para garantir uma respeitabilidade de fachada ao comércio de diamantes e para manter os preços destas pedras preciosas artificialmente altos, diz a AFP.

“Já é tempo de o Processo de Kimberley tornar obrigatório o controlo e a atribuição de licenças de exploração para as minas de diamantes, de oferecer uma segurança eficaz e passar licenças aos garimpeiros, que usam técnicas artesanais, onde tal for necessário”, afirmou Shamiso Mtisi, representante da sociedade civil no Processo de Kimberley em Joanesburgo, citado pelo Wall Street Journal. Criticou também o facto de a organização estar a certificar os diamantes do Zimbabwe, quando não há garantias sobre a transparência e o negócio das minas daquele país.

A situação dos que recorrem a técnicas artesanais (garimpo) é uma questão importante: 1,5 milhões de africanos ganham a vida desta forma, extraindo 16% dos diamantes que se vendem em todo o mundo – mas ganham cerca de um dólar por dia. “São extremamente pobres e vulneráveis a todo o tipo de predadores – militares, económicos”, afirmou, numa entrevista publicada recentemente no site Huffington Post, o canadiano Ian Smillie, especialista em "diamantes de sangue", autor de vários livros sobre o assunto, testemunha contra o ex-Presidente da Libéria Charles Taylor e um dos arquitectos do sistema do Processo de Kimberley.

Angola em 2015

Os contestatários do actual estado de coisas inquietam-se por ver a presidência entregue à China, um país que é um grande consumidor de matérias-primas e que promete concentrar-se sobretudo em aspectos técnicos, diz Alan Martin, da ONG canadiana Partnership Africa Canada. “Desta forma, nunca mais haverá mudanças”, afirmou à AFP.

Em 2015, será a vez de Angola assumir a presidência deste organismo – mas também a exploração de diamantes pelo Estado angolano não está livre de suspeitas. O jornalistas e activista Rafael Marques denuncia as ligações de figuras do regime e do exército angolano à Endiama, empresa nacional de diamantes, e vários abusos dos direitos humanos, cometidos nas Lundas, as regiões diamantíferas de Angola.

Mas não há de facto grande vontade de mudança ao nível dos governos. “Devemos reconhecer os limites e o papel do Processo de Kimberley. Foi criado com um objectivo preciso, mas não para acabar com os conflitos ou aos atentados contra os direitos do homem”, afirmou o embaixador sul-africano Welile Nhlapo.

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