Diálogos na Gulbenkian para acabar com o cinema nacional

É um exemplo: tal como Citizen Kane, de Orson Welles, em tempos, também agora No Quarto de Vanda, de Pedro Costa: o cinema português também inventa o mundo, não o recebe apenas. Eis a proposta de Harvard na Gulbenkian, ciclo que começa esta sexta-feira.

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"No Quarto de Vanda", de Pedro Costa

Era uma vez uma terra de inexplicáveis fenómenos, protótipos que vinham não se sabe de onde e não criavam descendência ... Era com intenso fascínio que aventureiros dos anos 80 do século passado (críticos de cinema em França) chegavam a essa ilha exótica por desbravar. Mas esse país não é já para este século XXI. Harvard na Gulbenkian, programa de filmes que se aventura mais pelas conexões poéticas do que pela lógica da causalidade cinéfila, é o resultado de diálogos entre o realizador português Joaquim Sapinho e o americano Haden Guest, director da Harvard Film Archive, que tira o cinema português dessa ilha e o coloca no mundo – porque vem dele, porque vai em direcção a ele, porque lhe dá forma.

A partir deste fim-de-semana, com Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Martins Cordeiro, a trazer até nós os cineastas Ben Rivers e Béla Tarr, abrem-se no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian “diálogos sobre o cinema português e o cinema do mundo”. Até Março, um primeiro módulo de seis diálogos envolverá os portugueses Reis/Cordeiro, Paulo Rocha, Susana de Sousa Dias, Manuela Viegas, Manuel Mozos e Pedro Costa no diálogo com que outros artistas vêm interceptando o mundo: Rivers e Tarr são os primeiros a deslocarem-se a Lisboa, mais tarde virão Nelson Pereira dos Santos, Víctor Gaviria, Patrício Guzmán, Soon-mi Yoo, Lucrecia Martel, Martin Rejtman, Denis Côté, Albert Serra, Nicolás Pereda e Tomita Katsuya. E ao longo das próximas semanas será anunciado o que ainda veremos até Junho, mais seis deste total de 12 diálogos.

“É problemática essa ideia de um cinema nacional, essa ideia de que as coisas têm fronteiras”, diz ao PÚBLICO Haden Guest. “Claro que os realizadores são portugueses, claro que partilham um contexto. Mas o cinema é qualquer coisa de polivalente. Admito que seja excitante essa ideia, imperialista, de pretender chegar a um lugar que mais ninguém chegou, como se o descobrisse” – por exemplo, o novo cinema de Taiwan nos anos 80 ou mais recentemente a nova vaga do cinema romeno, exemplifica. “Mas o que une os cineastas portugueses” – e fala em Sapinho, em Pedro Costa, em João Pedro Rodrigues –, “gente que tem um grande conhecimento da História do cinema, não é tanto esse conhecimento ou essa cinefilia, mas o facto de pensarem através do cinema. De descobrirem formas de ver. Formas de imaginar. Por isso o seu cinema é aberto: ligado a um contexto mais alargado.”

Não é novo, para Haden Guest, desde 2006 director do Harvard Film Archive na Universidade em Cambrigde (Massachussets), esta curiosidade – ele diz que, sendo raro o acesso a textos ou obras escritos em inglês sobre cinema português, toda a recomendação é “preciosa” e ele programa para conhecer. Começou ainda adolescente, em 1993, com o “encontro apaixonado” com Vale Abraão, de Manoel de Oliveira, numa sala de Manhattan. Mais tarde cruzar-se-ia com uma caixa de DVD da obra de João César Monteiro, e em 2010 organizaria em Harvard uma retrospectiva dedicada ao cineasta. Monteiro levou-o a procurar mais. Mas antes houve Colossal Works: The Films of Pedro Costa. E depois The School of Reis: The Films and Legacy of António Reis and Margarida Cordeiro, programa que identificou uma figura tutelar para estes portugueses de que se fala. A eles se refere assim: são “experimentais”, é gente que reinventa a ideia de cinema no mundo.

O peso do cinema português
Por essa razão, Rui Vieira Nery, director do Programa Gulbenkian Educação para a Cultura (a Gulbenkian é um dos co-produtores da iniciativa), sublinhando que “não há nada de novo” nesta associação da fundação ao cinema português, não anunciando sequer o regresso a um “envolvimento directo na produção cinematográfica” como aconteceu no passado, é uma associação “que nos parece oportuna numa altura em que no debate público não é tido em conta o peso real que o cinema português tem no mundo.”

“A ideia de que estes cineastas portugueses deviam fazer mainstream é qualquer coisa de restritivo: seria como pedir a Gerhard Richter que pintasse em série”, continua Haden Guest. Alguns deles fizeram o cinema mudar. Um dos capítulos em que o ciclo se divide chama-se, para que não fiquem dúvidas, Depois de Vanda – isto é, depois de No Quarto de Vanda, de Pedro Costa. Início do século XXI, na mesma altura de En Construcción, de José Luis Guerín, em que também um bairro era destruído: “Há muitas mortes e muitos nascimentos do cinema, há isso também nesses filmes, em ambos os fantasmas do cinema clássico e há a beleza do digital”. Costa e a sua Vanda: “Não é a explosão de uma estrela que faz tudo acontecer, mas essa explosão produz um impacto que faz as coisas acontecer.” Guest não tem dúvidas: tal como Citizen Kane, de Orson Welles, em tempos, também agora No Quarto de Vanda, de Pedro Costa.
 
 

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