A tirania dos documentos

O jogo “Papers, Please”, que se descreve como um thriller distópico sobre documentação, decorre nos anos 80, com o jogador a encarnar um funcionário de fronteira de um país totalitário, encarregado de fiscalizar os documentos

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Um jogo serve para nos fazer sentir no corpo, de forma subtil e inconsciente, o que é fazer algo que nunca nos imaginámos fazer. É isso que faz o jogo Papers, Please, de Lucas Pope, que mostra no que nos tornamos quando estamos sufocados entre o desespero e a repressão.

O jogo, que se descreve como um thriller distópico sobre documentação, decorre nos anos 80, com o jogador a encarnar um funcionário de fronteira de um país totalitário, encarregado de fiscalizar os documentos das pessoas que tentam entrar na fronteira, confrontando os dados em busca de fraudes e pessoas indesejáveis. O jogo, estritamente, é só isto, mas parte dessa premissa simples para explorar todas as possibilidades narrativas e humanas que a situação proporciona, tornando-se assim numa pérola de “game design”. Pois o jogador, enquanto mero funcionário, é forçado a tentar cumprir regulamentos cada vez mais kafkianos, sob o risco de punição, ao mesmo tempo que diante de si passam pessoas desesperadas que tentam entrar no país para reencontrar familiares, arranjar emprego, procurar curas para doenças, começar vidas novas, fugir à polícia ou à opressão, contrabandear pessoas ou bens. E essas pessoas são capazes de todas as falsidades e chantagens para conseguirem o que querem, com aquela manha dos seres humanos desesperados que nenhuma regra consegue prever.

E preso entre um Estado que o sobrecarrega de exigências e punições, e indivíduos que mentem, falsificam, imploram, ignoram, agridem, o jogador vai-se tornando aos poucos parte dessa máquina infernal, consolando-se com o pouco poder que tem sobre os papéis — que é também poder sobre vidas humanas — para desprezar aqueles que atende. Porque se esses papéis não condisserem, se a sua informação não estiver de acordo entre si até ao último número, até à última letra, até ao último carimbo e linha da impressão digital, há vidas, planos e sonhos humanos que desaparecem.

Se os anos 80 ou os países totalitários parecem uma memória longínqua, a nossa identidade, cada vez mais, não só na fronteira, mas a toda a hora — para aceder à conta bancária, ao correio, aos serviços fiscais, às informações pessoais — depende de termos os documentos apropriados, os cartões certos, os códigos corretos, os “logins” predefinidos, as respostas solicitadas, até ao último dígito, para não sermos excluídos do sistema e ficarmos à porta do que precisamos ou desejamos. E esse controlo cada vez menos é feito por regras lacunosas ou seres humanos sensíveis e cada vez mais por máquinas e formulários, indiferentes a todos os casos particulares e a todas as circunstâncias.

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