O (des)encanto da China

Um dos temas quentes que foi discutido foi o das empresas públicas chinesas, SOE (state-owned enterprises). O crescimento económico na China sempre esteve muito ligado a estas empresas mas agora passaram a ser um problema. Em regra passaram a ser ineficientes e acumulam grandes quantidades de dívidas. Não há dúvida que a sociedade chinesa vive num sistema atípico, com um forte centralismo no Estado a conviver com um estranho e até selvagem capitalismo. Sobre as SOE’s Xi prometeu algumas reformas, acabar com alguns monopólios, alterar o tipo de gestão destas empresas e permitir que o sector privado invista em parcerias com elas. As reacções foram positivas em relação a estas medidas, é natural que ajudem estas empresas públicas a serem mais competitivas e que a ligação com a iniciativa privada centre os objectivos no aumento de produtividade. O presidente Xi disse ainda que planeava liberalizar alguns preços, nomeadamente da água, do gás natural, dos transportes e das telecomunicações, assim como deixou a porta aberta para alguma desregulamentação das taxas de juro e dos movimentos de capitas e ainda que permitiria a criação de pequenos Bancos por investidores particulares. Para mim é do mais curioso que esta abertura da economia ao sector privado, com o objectivo natural de uma alocação de recursos mais inteligente, seja anunciado pelo presidente e secretário-geral do partido comunista chinês.

Uma segunda reforma anunciada foi sobre o sistema de registo de residência. Nós, os portugueses, falamos com algum orgulho da nossa história, nomeadamente da idade do País. Temos razão para isso, um dia assistia a uma aula de marketing dada por um excelente professor americano que nos falava sobre processos de aumentar a longevidade das empresas. Não me contive e expliquei-lhe a curiosidade daquela palestra. Em Portugal tínhamos empresas como a Jerónimo Martins, fundada em 1792 ou a L.J. Carregosa, em 1833 e era este professor dum país criado há meia dúzia de dias que nos falava de longevidade. Claro que isto é um discurso que funciona (e impressiona) americanos mas quando se fala na China temos que nos calar bem calados. Este sistema de registo das pessoas vem do tempo da dinastia Xia, qualquer coisa entre o século XXI e XVI a.C..

Todos os chineses têm um hukou, um documento que lhes permite residir num determinado lugar, a maioria das vezes a sua terra Natal, e que os classifica como residentes citadinos ou rurais. É fácil perceber as implicações dum sistema deste tipo a variados níveis, nomeadamente quanto às injustas implicações no acesso a empregos, à educação, ao acesso à saúde e a outros benefícios sociais. São muitos os críticos a este sistema com o argumento que se torna um obstáculo a um desenvolvimento económico e social equilibrado no país. Ainda não foi dito que o sistema acabaria, para já veio a promessa que o governo está a planear uma distribuição dos recursos públicos de uma forma mais equitativa entre as populações rurais e as das cidades. Já é melhor que nada, digo eu, mas acima de tudo poderá ser o inicio de uma maior reforma no hukou.

Um outro problema em que havia a espectativa de algumas novidades neste encontro é a divida pública local. Já sabemos que na China é tudo à grande mas de facto ninguém parece saber ao certo a dimensão deste problema. Alguns economistas estimam que se situe entre 14,1 e 19,7 triliões de Yuan. Como costume dizer, a mim já me chegaria o dobro, isto é cerca de um terço do produto chinês! O mais curioso é que parece que nem o governo chinês sabe o tamanho desta dívida, tanto é que encomendou uma auditoria há alguns meses, de que se esperaria a divulgação do resultado neste congresso, mas tal não veio a acontecer. Teremos que aguardar sobre a dimensão e eventual solução para este problema, mas sabemos que é grande,... ou gigantesco.

É preciso ter em atenção que a economia chinesa está a crescer 7,8% ao ano. Para nós que discutimos se estamos ou não em recessão técnica nem percebemos bem o que é isso mas os receios de todo o mundo é que nos habituamos a ver esta economia crescer mais de 10% nos últimos 30 anos. O discurso do presidente Xi Jinping é muito claro sobre a evolução da economia e sobre a necessidade de medidas para corrigir o excesso de capacidade, o aumento na dívida, as distorções no sector financeiro e a falta de concorrência. Fica naturalmente a dúvida sobre o prazo para que estas reformas sejam postas em prática. Algumas destas coisas já são faladas há algum tempo e esperam-se para breve, como por exemplo a desregulamentação financeira e a abertura dos mercados. Outras, como no caso das mencionadas empresas públicas, ficamos ainda expectantes sobre quanto é que o estado está efectivamente disposto a ceder ao mercado e à iniciativa privada.

Os problemas da China não se ficam por aqui. Andy Serwer, no editorial da revista Fortune desta semana diz qualquer coisa como isto: “que interessam os comboios de alta velocidade, os projectos imobiliários gigantescos, .... se o governo chinês não consegue assegurar o mais básico elemento para a vida humana, que é o ar puro?” Reparem bem, não estamos a falar do discurso de algum ambientalista sobre o aquecimento global, que enquanto o pau vai e vem, nos permite uns melhores dias de praia. Estamos a falar de um problema de toxidade que se não é revertido muito rapidamente terá uma enorme repercussão na economia e será por certo o pior pesadelo do governo chinês.

Um outro grande problema na China também nos é familiar: o crescimento da população, ou a falta dele. Incomoda-me um pouco que este seja um tema esquecido pela generalidade da classe política. Uma boa razão seria acreditar que este problema se relaciona com a liberdade de cada um e que os governos nada têm que se meter com quantos filhos cada um de nós quer ou deve ter. Claro que a razão não é essa, o problema é que a maioria dos incentivos ao crescimento da população não rende dividendos no horizonte de uma legislatura e conhecemos bem a relutância política em “fazer filhos nas mulheres dos outros”. As contas são simples e desculpem-me a frieza económica do comentário mas uma criança recém-nascida demorará cerca de 20 anos a ser produtiva. São factos, não fui eu que inventei e o problema não deixa de existir por não olharmos para ele, acima de tudo quando defendemos políticas de apoio social que só seriam sustentáveis com um maior crescimento da população. É quase unânime a opinião dos economistas em considerarem que há dois possíveis atalhos para um desastre económico, gastar uma percentagem exagerada do produto, o que acontece na Europa há uns anos em especial por causa dos tais apoios sociais e um baixo crescimento da população. Ouvimos recorrentemente dizer que Portugal, e outros, precisam é de políticas que conduzam ao crescimento económico. Estaremos todos de acordo mas prova-se que as duas grandes determinantes para o crescimento a prazo da economia é o aumento da produtividade e o crescimento da população. Ora em termos demográficos temos uma péssima evidência: a maioria do mundo desenvolvido, incluindo o Japão, os países europeus e os Estados Unidos tem uma taxa de fertilidade inferior a 2,05 crianças por cada mulher, que é o limite para que as respectivas populações não decrescessem. A China tem em média uma taxa de fertilidade de 1,6 crianças e o problema ainda é mais grave porque muitos dos países economicamente concorrentes têm taxas de fertilidade muito maiores, como é o caso da Índia, do Paquistão ou da Indonésia.

O principal problema com o envelhecimento da população é que altera a relação entre trabalhadores activos e pensionistas o que afecta naturalmente o custo dos apoios sociais. Num país como a China, em que o produto per capita é baixo (cerca de 15% dos EUA) este problema é ainda mais grave. Haverá duas consequências óbvias com este problema demográfico chinês: no curto prazo haverá um maior investimento de capital pelo governo (reparem que não estou a falar de decisões politicas, é que não há outro caminho), uma substituição natural da chamada força do trabalho atirando dinheiro para a indústria, para as tecnologias de informação e para os sectores de saúde. No longo prazo a consequência é bem pior porque os desafios dos países vizinhos com maior crescimento de população tendem a agravar-se o que só pode levar a um caminho, a escassez de recursos mas aqui não nos podemos alhear ao facto da China, já hoje, importar muito do que consome em bens agrícolas e outros recursos naturais.

 O progresso da China é evidente nos últimos 40 anos e ainda hoje nos surpreende com certos casos. Reconhecemos que muita da habilidade daquela boa gente é copiar e fazer mais barato. Durante muitos anos dizia-se que o faziam com menor qualidade mas hoje já ninguém tem dúvidas que isso não é assim. Dizia-se muitas vezes a brincar, só não fazem aviões. Pois não faziam, mas uma empresa pública, a Comac, criada há apenas 5 anos, prepara-se para entrar no negócio dos aviões, um mercado em que a Boeing e a Airbus controlam 70%. Ninguém tomou muito a sério quando Michael O’Leary, presidente da Ryanair, em 2011, disse que iria colaborar com a Comac nas especificações dum modelo C919 “alongado”. De facto ainda não encomendou nenhum avião mas as contas são muito curiosas. O’Leary diz que nos Boeing 737 consegue sentar 189 pessoas e que pelas regras internacionais de segurança tem que ter uma hospedeira para cada 50 passageiros. Ora no novo Comac consegue sentar 199, são 10 passageiros a mais, o que a uma média de €40, durante 364 dias dá 1 milhão de euros de resultados “extra” ao fim de 7 anos. Outra questão é se queremos voar num avião chinês, mas penso que sim!

Não sabemos da futura eficácia das reformas de Xi Jinping. Para os que acham que aquela economia só precisa de alguns ajustamentos para voltar à antiga pujança então talvez Xi esteja no bom caminho. Eu sinceramente não acredito, acho que o modelo de desenvolvimento centrado no Estado nunca funcionará muito tempo. Aquela boa gente precisa de reformas de fundo e receio que Xi não esteja a fazer o suficiente. Gostaria de estar enganado, ou para usar a expressão aqui na moda, que o Xi fosse para além das reformas anunciadas.

Consultor em projectos de investimento e seguros de crédito

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