Retórica e realidade: a governamentalização do Conselho Nacional de Cultura

O CNC, tanto na sua anterior versão como mais ainda na actual, constitui a maior prova do imenso fosso que separa retórica e realidade.

Existe uma doença que corrói as democracias contemporâneas: a crescente desconfiança com que os cidadãos olham a polis, da qual se alheiam cada vez mais.

A governação, em particular, encontra-se quase em roda livre, posto que nem os programas eleitorais, de resto vácuos, são para levar a sério, nem o controlo parlamentar cumpre eficazmente a sua função, seja porque a chicana partidária o impede, seja porque não dispõe da suficiente preparação técnica.

Uma das modalidades pelas quais os Estados modernos têm procurado mitigar este mal é a criação de organismos tecnicamente competentes e socialmente representativos, capazes de fazer reflectir o sentimento dos cidadãos junto dos diferentes órgãos do poder – e desde logo junto da governação corrente. Em Portugal, esta via, ainda muito incipiente e imperfeita, tem vindo a ser prosseguida pelos chamados "conselhos nacionais", em grande parte de iniciativa parlamentar. Eles existem já em áreas como a Educação, a Juventude, a Justiça ou até a Ética para as Ciências da Vida, só para dar alguns exemplos.

Na Cultura foi também criado em 2007 um conselho nacional de cultura (CNC). Mas nasceu mais do que coxo. Em primeiro lugar decorreu de iniciativa do Governo, desrespeitando mesmo em certos casos leis parlamentares de direito reforçado (nos museus, por exemplo, uma lei-quadro impõe a criação de um conselho de museus que nenhum governo até hoje entendeu constituir – nem a Assembleia da República entendeu saber porquê e com que fundamento legal). Em segundo lugar, e sobretudo, foi concebido mais como plataforma de encontro entre altos funcionários (da Cultura e de outras áreas da governação) e personalidades nomeadas do que verdadeiramente como instrumento de reforço das políticas públicas, através do envolvimento das diferentes forças e sectores culturais.

Ainda assim, no funcionamento em secção existiam situações bastante diversas. Algumas levavam a níveis inimagináveis o enclausuramento democrático referido, chegando a ser ofensivas da inteligência dos cidadãos. Era o caso da Secção de Património Arquitectónico e Arqueológico, que possuía apenas um conselheiro independente (o representante da Conferência Episcopal), sendo todos os restantes, 16, dependentes do Governo, seja por inerência das funções oficiais que detinham, seja por nomeação a título de “individualidades de reconhecido mérito”. Mas outras respeitavam o que se deveria esperar deste tipo de órgãos, ou seja, dispunham de representação maioritária ou muito significativa de segmentos sociais relevantes em cada caso (universidades, Igreja católica, associações cívicas, científicas, profissionais ou empresariais). Era sobretudo o caso das secções de Direitos de Autor e de Cinema (neste caso com 13 conselheiros independentes e somente quatro com algum tipo de vinculação ao Governo). Também as secções do Livro e das Bibliotecas e dos Museus e da Conservação estavam nesse âmbito, já que quase metade dos seus membros eram representantes de entidades independentes (e mais de dois terços não dependiam de nenhum modo do Governo central).


O CNC de 2007 foi entretanto semi-sepulto em 2010. E desde aí as secções reuniram-se ou não, conforme mais conveio a quem as deveria continuar a convocar regularmente, como estava legalmente obrigado, se de facto lhes quisesse respeitar as competências e dignidade. Mas em Setembro passado foi finalmente dado a conhecer o novo CNC e começaram já a reunir-se as respectivas secções, agora aumentadas em mais duas: Artes (corrigindo assim lacuna imperdoável, que devia até talvez ser desdobrada em Artes Performativas e Artes Plásticas) e… Tauromaquia – uma originalidade imposta pela afición do último secretário de Estado da Cultura do Governo Sócrates, algo tão bizarro que pode facilmente dar lugar à amargura dos muitos campos culturais deserdados da sorte, como sejam os do chinquilho e demais jogos de rua, que, todavia, terão de resignar-se à sua condição de ocupações demasiado popularuchas, estranhas às elites marialvas e próprias da verdadeira cultura tradicional, dita "folclore" (que horror, só o nome causa arrepios…), da qual os altos funcionários e os “belos espíritos” que maioritariamente compõem o CNC fogem como o diabo da cruz, apenas lhe concedendo algum interesse etéreo ou “imaterial”.

Esperariam alguns que se aproveitaria agora para corrigir os excessos de governamentalização de 2007, no que se cumpriria a retórica da libertação da “sociedade civil” em relação ao Estado. Mera ingenuidade. O CNC de 2013 consegue a proeza de ser mais governamental do que o anterior. Em quase todas as secções diminui, em termos relativos, a componente representativa independente, aumenta a de altos funcionários, assim como a de “individualidades” nomeadas (de que não se contesta a idoneidade, nem a eventual independência, porém, subjectiva). Na versão actual apenas a secção de Cinema continua a possuir mais de metade de conselheiros independentes, que ainda assim foram significativamente reduzidos. Secções como a do Livro e a dos Museus foram profundamente alteradas nos seus equilíbrios, passando os representantes autónomos a constituir menos de um terço dos membros e ficando assim impedidos de, por si mesmos, suscitarem a discussão das matérias que entendem, em reuniões convocadas expressamente para o efeito. Apenas na secção de Arquivos houve alteração inversa, com significativo reforço da componente independente. E na de Património Arquitectónico e Arqueológico inclui-se finalmente um representante do Icomos Portugal, mas mantém-se a composição geral profundamente autocrático, não se tendo sequer aproveitado para corrigir o escândalo da falta de representação das duas mais respeitáveis associações nacionais daqueles sectores, a Ordem dos Arquitectos (que, todavia, passou a estar presente na secção das Artes) e a Associação dos Arqueólogos Portugueses.

Em conclusão: o CNC, tanto na sua anterior versão como mais ainda na actual, constitui a maior prova do imenso fosso que separa retórica e realidade, nisto juntando, em graus diversos é certo, mas sempre para mal das nossas democracias, agentes políticos de orientações diversas, porém, todos responsáveis pelo seu isolamento, assim como o da governação, que vão alternadamente assegurando. Mas, sendo assim, é igualmente mister reconhecer que os cidadãos talvez tenham o que merecem, como decorre do silêncio quase total (salvo no caso do cinema) com que esta matéria do CNC tem sido acolhida, porventura na esperança de que as costas folguem, entre vindas e idas do pau, e algumas migalhas acabem sempre por sobrar para quem se saiba posicionar, gerindo habilidosamente silêncios.

Arqueólogo
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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