A(s) verdade(s) de Sarah

A partir de uma história familiar, a actriz canadiana Sarah Polley explora o modo como o cinema conta histórias.

Conhecemos Sarah Polley mais como actriz (de filmes de Atom Egoyan, David Cronenberg ou Terry Gilliam) do que como realizadora - Longe Dela (2006), adaptação de Alice Munro que valeu a Julie Christie nomeação para o Óscar, saiu directo em DVD, Notas de Amor (2011) teve uma estreia confidencial no início deste ano. Mas Histórias que Contamos, a sua terceira longa-metragem é, de muito longe, a sua obra mais interessante; e a sua estreia entre nós coincide com a de outros filmes que partilham a vontade de questionar o que reside por trás das histórias que contamos sobre a nossa vida.Na teoria, é um documentário sobre Diane, mãe da realizadora, actriz e directora de casting que morreu de cancro ainda Sarah era menina. Na prática, Histórias que Contamos transforma-se numa meditação sobre o modo como escolhemos contar ou registar as nossas próprias histórias, como procuramos que a nossa vida se enquadre numa narrativa precisa e linear.


O centro do filme é a paternidade biológica da realizadora: durante muito tempo corria na família Polley, em jeito de piada, que Sarah não era muito parecida com o pai. Mas quando se percebe que essa piada pode ter um fundo de razão - a concepção de Sarah coincidiu com uma temporada em que Diane esteve em Toronto a actuar numa peça - a dúvida instala-se. Tínhamos até aqui um documentário relativamente linear, cruzando depoimentos contemporâneos do pai, irmãos e irmãs de Sarah e de amigos e colegas do casal com imagens de filmes familiares em super-8, articulado à volta de uma narração em off, lida pelo pai. Passamos a um objecto montado sobre a ambiguidade, onde a verdade perde os contornos de certeza absoluta e é relativizada por imagens que se traem a si próprias como apenas possíveis versões do que aconteceu realmente.

Enquanto filme que se questiona e desmonta a si próprio à medida que avança, Histórias que Contamos é um primo do Terra de Ninguém de Salomé Lamas que chegará às salas na próxima semana; ao abordar a necessidade humana de criar histórias para fazer sentido da nossa vida, partilha elementos com A Mentira de Armstrong de Alex Gibney (actualmente em exibição). A sua aparente banalidade de “história familiar” esconde um discreto trabalho de teorização das questões, mesmo que, entre redundâncias e sugestões, o filme esteja longe de ser perfeito e por vezes pareça que Polley não está inteiramente em controlo do seu projecto. Histórias que Contamos não deixa por isso de ser um trabalho inteligente, um contributo relevante para o actual momento dos cinemas ditos “do real”.

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