Em Seattle, o inferno são os outros

Foto
Maria Semple foi argumentista de séries de TV como a Doido por Ti - Mad About You ou o sucesso de culto De Mal a Pior - Arrested Development

Maria Semple tornou-se numa sensação nos EUA, em 2012. Foi apadrinhada por Jonathan Franzen, e o seu segundo livro, Até ao Fim do Mundo, tornou-se um best-seller. É uma comédia de amor entre mãe e filha, e sobretudo um “vão-se lixar” ao culto da “comunidade”

Se Jean-Paul Sartre fosse parte de uma família Microsoft em Seattle, se tivesse a filha num colégio privado obcecado com a participação dos pais e lidasse com vizinhos de ideias fixas sobre as amoreiras silvestres nas vedações, teria escrito num email essa verdade absoluta que é “o inferno são os outros”. Mas nesta família, a existencialista é outra: Bernardette Fox, arquitecta famosa fechada à criação, mãe, neurótica, provavelmente agorafóbica e muito, muito irritada com a cidade que simbolizou a sua queda em desgraça. Um alter-ego da escritora Maria Semple, validada por Jonathan Franzen e lida por largos milhares em todo o mundo.

“Os neuróticos divertem-me, tenho grande simpatia e amor por eles”, diz ao telefone com o Ípsilon a partir da chuvosa Seattle, cidade encavalitada no cimo da costa Oeste dos Estados Unidos e envolta por floresta e empresas como a Microsoft, a Amazon ou a Starbucks. Cidade onde só há dois penteados - “cabelo grisalho curto e cabelo grisalho comprido” -, com escolas que procuram Pais Mercedes e não Pais Subaru. Terra de roupa de caminhada e onde um “transe colectivo” fez com que todos os seus habitantes vivam em casas do estilo Craftsman, para irritação de Bernardette Fox. Estas neuroses de Bernardette são as neuroses de uma Maria Semple deprimida em Seattle.

Do outro lado da linha, estamos já a falar com uma escritora feliz. Ri-se profusamente, abraça as referências ao seu sucesso sem falsas modéstias e fala sem pruridos sobre fracasso, bairros, o Facebook e heróis literários. Maria Semple vive há muitos anos com Bernardette. Parte dela, ensanguentada e resmungona, ainda vive na mente da escritora. A outra parte já não mora ali.

Hoje, vive bem em Seattle e consigo mesma. O livro dilacera-a, mas o seu “sucesso é muito doce”, diz. “É muito doloroso de ler, há sangue em cada página. Foi um livro muito pessoal e uma altura dolorosa da minha vida”, diz. É o único momento na conversa em que perde o tom alegre, mergulhando brevemente numa versão já digerida da sua desgraça.

Bernardette, como descobrimos ao longo de 355 páginas, é a autora premiada de uma casa pioneira que antecipou os ideais da arquitectura sustentável. Anos mais tarde, é uma espécie de génio frustrado, descrita pela sua própria criadora como “uma pessoa horrível”. O que faz sangrar a página é que “na verdade estava a escrever sobre o falhanço do meu primeiro romance e de quão doloroso isso foi”, explica solenemente Maria Semple. “Não conseguir escrever, não conseguir ultrapassar o meu sentimento de vergonha e de ser uma falhada. O livro não vendeu, o meu agente deixou-me.”

Recuemos um pouco: Maria Semple foi argumentista de séries de TV como a sitcom Doido por Ti - Mad About You ou o sucesso de culto De Mal a Pior - Arrested Development. Passou quinze anos em salas de argumentistas. Depois fartou-se e trocou Los Angeles por Seattle com o namorado, o produtor e guionista George Meyer (Os Simpsons), para ser romancista e ter filhos. Escreveu o seu primeiro livro, This one is mine, para quase ninguém - vendeu pouco mais de dois mil exemplares. Agora, sente que precisa de tirar do sistema o seu sucesso, Where’d you Go Bernardette, editado em Portugal pela Teorema/LeYa com o título Até ao Fim do Mundo: “Falar do livro e analisar a minha escrita é o contrário de criar”.

Maria Semple não se livrará tão cedo da arquitecta que desaparece misteriosamente dois dias antes do Natal e que só deixa um rasto de cartas, emails e relatórios hospitalares ou do FBI. Até ao Fim do Mundo é um page-turner - para muitos não se lê, devora-se. Mal saiu, foram comprados os direitos para um filme e Semple acaba de terminar o guião.



Cartas como personagens

Trabalhar em televisão ensinou-a a “escrever em cenas” e o livro fá-lo de uma forma particular. É então um romance epistolar, construído por emails, memorandos, queixas de donas de casa desesperadas e mensagens colectivas para gente que leu demasiados livros sobre paternidade. Na forma, inspirou-se em As Ligações Perigosas e English Passengers, de Matthew Kneale, porque “usam as cartas como personagens e não apenas para alternar narrativas”. A única voz neutra, o narrador que tudo liga, é a de Bee, a filha adolescente que partilha Abbey Road e os Beatles com uma mãe impecavelmente vestida e inexoravelmente distante de todos os outros.

Bernardette Fox, mulher de Elgin Branch, developer na Microsoft e autor da quarta TEDTalk mais popular do mundo, é “demasiado crítica e, no início do livro, lança culpas sem se responsabilizar, falta-lhe coragem”, descreve Semple. Uma pessoa abrasiva em que a escritora se revê e que adora, e em que alguns de nós, leitores saudavelmente neuróticos, poderão também ver um pouco de si mesmos.

A narrativa delirantemente simples de Semple consegue o feito da leitura tópica: chamou a atenção de arquitectos, de geeks fascinados com os detalhes sobre a vida na Microsoft, de psicólogos e de conhecedores de Seattle. Mas, para além do humanizador amor mãe-filha, há dois temas essenciais que atravessam Até ao Fim do Mundo. Um deles é o aforismo, assumido por Semple no romance, de que quando forças criativas como Bernardette páram de criar, se tornam “uma ameaça para a sociedade”.

Mas a sociedade também se torna uma ameaça para elas, asfixiante, derrisiva na sua obsessão pelo detalhe. E esse é o segundo tema: a comunidade. O culto da comunidade, capaz de fazer transbordar o copo social.

Lixo, diz ela

“Não suporto a ‘comunidade’. Há uma frase no livro que é quase a transcrição de uma interacção que tive na escola da minha filha. Sou como a Bernardette: nunca a acompanho até ao interior da escola, deixo-a à porta. A meio do ano apareço num evento da escola e umas mães perguntam-me: ‘Quem é você?’”, recorda Semple. A conversa prosseguiu, com as mães a tentar desesperadamente saber se, para compensar uma mãe desnaturada, haveria um pai mais participativo. Não, não havia. “Ah, então nenhum de vocês acredita em comunidade?” Semple arregalou-se: “Não sabia que comunidade era algo em que se acredite”.

As vizinhas que tentam apertar laços artificiais entre famílias de um bairro e as mães do livro são versões desta conversa. “Quando é que isso se tornou num sistema de crenças? Detesto a palavra e o conceito, aqui é usada de uma forma tão vexante”, irrita-se. “Sou como [Vladimir] Nabokov, não tenho afiliações. Mantém-nos honestos e soltos, de mente aberta e curiosos. É por isso que não estou no Facebook nem no Twitter. Não gosto da caixa de ressonância. Toda a gente pensa o mesmo num grupo de ‘amigos’ e todos ‘gostam’ uns dos outros e aplaudem-se por pontos de vista verdadeiramente banais. O consenso da comunidade, das redes sociais, repele-me. É religião, é o ópio das massas - há muitas versões diferentes dela, sejam os vizinhos, a escola ou os amigos do Facebook”, remata, recuperando o fôlego.

Até ao Fim do Mundo, pela sua estrutura e pelo tema da criança que procura um pai, já foi comparado a Extremamente Alto e Incrivelmente Perto, de Jonathan Safran Foer; algumas das suas ideias podiam subir uns quilómetros até Vancouver para ir ter com Douglas Coupland e os seus livros feitos de emails, famílias disfuncionais, videojogos e páginas de código binário. Mas Maria Semple não quer nada disso. Lixo, diz ela.

Como romance epistolar do século XXI, “o meu livro é muito moderno e ao mesmo tempo é muito anacrónico”, admite Semple quando notamos que não há SMS, mensagens do Twitter ou do Facebook na narrativa. “É muito piroso e não quero isso no meu livro”, diz com repulsa. “É nojento e não acredito que pertença à literatura, sou muito da escola de pensamento do Jonathan Franzen – a literatura é sagrada e não quero os meus livros cheios de tralha com hashtags e arrobas…”

Pai literário

Quando Maria Semple começou a escrever Até ao Fim do Mundo, não era um romance epistolar. Bernardette era o motor e a viagem adivinhava-se demasiado ácida. A coisa não “crepitava na página” e optou pelas cartas e emails. Enviou uma cópia a Jonathan Franzen, o seu pai literário - Correcções é o livro favorito de Semple, que se tornou escritora por causa dele.

Passado um ano, o “grande romancista americano” da capa da revista Time respondeu-lhe. Pedia desculpas pela demora. Tinha gostado. Dava-lhe dicas e uma frase para usar promocionalmente, que agora encima a edição portuguesa. “Devorei este romance com um prazer absoluto.”

Do outro lado da linha há suspiros. “Foi o ponto alto da minha vida… como escritora – não quero dizer que foi melhor do que o nascimento da minha filha, mas está lá perto.” Franzen, a que agora chama “amigo” e que a tem ajudado a navegar as águas dos romancistas de sucesso, deu-lhe sobretudo segurança: “Talvez por ser mulher e vir da TV, nunca me levei muito a sério. O Jonathan Franzen tem-me permitido pensar em mim mesma como ele pensa em mim e não como uma mãe estúpida que escreveu um livro. Por isso, de vez em quando digo: se o Jonathan Franzen pensa que eu sou assim tão boa, então se calhar sou”.

Sugerir correcção
Comentar