E, no entanto, elas escreveram!

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A Marquesa de Alorna (1750-1839) é um caso particularíssimo da escrita feminina do final do século XVIII

Até ao século XVIII, elas não deviam escrever, e no entanto escreveram. Não deviam editar, e no entanto foram lidas. "Uma Antologia Improvável — A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII)" é a descoberta de toda uma biblioteca feminina. Eis as 1001 noites escondidas da literatura portuguesa

A biblioteca das mulheres portuguesas poderia ser uma fantasia borgiana, uma nova versão da boceta de Pandora, a história de uma literatura bastarda ou apenas mais um tesouro enterrado do património cultural nacional. Esse tesouro, esse bastardo, essa caixa de Pandora, essa invenção borgiana têm vindo a ser resgatados por uma equipa de investigadores dirigida pela professora Teresa Sousa de Almeida, da Faculdade de Letras da Universidade Nova de Lisboa. A sua colaboradora, Vanda Anastácio, organizou entretanto o volume Uma Antologia Improvável — A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII), que a Relógio D’Água acaba de editar. É a primeira recolha de textos no feminino, baseada num trabalho que já permitiu a descoberta de mais de 900 escritoras até ao final do século XIX. 

E no entanto essas mulheres que escreveram nem deviam existir! Quando o primeiro projecto de levantamento de escritoras portuguesas submeteu à Fundação de Ciência e Tecnologia um pedido de financiamento, a resposta dada por um painel internacional foi a de que não havia dados que justificassem a criação de uma base de dados! 

“Não temos a voz das mulheres antes do século XVIII”, diz ao Ípsilon Vanda Anastácio, para quem o desconhecimento que temos dessas escritoras e daquilo que escreveram é proporcional ao desconhecimento que temos da nossa História. “Portugal é também o que as senhoras escrevem.” Começou a interessar-se “pelos problemas que levanta a escrita das mulheres” quando foi convidada a integrar uma equipa que trabalhava na edição da obra da Marquesa de Alorna. Apesar do interesse que entretanto a sua vida suscitou, com duas gordas biografias editadas recentemente, a obra da Marquesa de Alorna continua indisponível: “Sabia inglês, francês, espanhol, latim, italiano, alemão e traduziu obras de todas essas línguas; tem uma produção poética em seis volumes publicados no século XIX; traduziu todo o Saltério em verso; tem uma obra impressionante... E o que se escreve sobre ela é que foi uma boa mãe e uma esposa fiel. Que alguém seja um excelente pai ou marido não é qualificação para um escritor masculino. Estes lugares comuns pesaram no nosso desconhecimento da escrita das mulheres.”

Nas suas mais de 600 páginas, Uma Antologia Improvável inclui muitas surpresas, novidades e subtilezas. Sem pudor nem sentimentalismo, o relato de Crispina, “donzela pobrinha”, incluído na secção dedicada à prosa mística, constitui uma autêntica revolução sexual no contexto da literatura religiosa (mesmo se recordarmos o precedente de Santa Teresa d’Ávila). Escreve Crispina sobre o encontro que teve com “O Senhor”: “E ali o comecei a tragar com umas tremuras muito finas e uns amores muito intensos; tanto que este se rendeu, não era mais que uma brandura e deçura quando se estava derretendo por dentro de mim.” E mais escreve Crispina, sobre a sua noite de amor: “A este tempo chegou-se ele a mim, e deu-me um toque tão sutil que me trespassou, e durou-me tempo bastante, porque fiquei como embasada; eu vi-o com tal sutileza que me não senti ferida senão quando entrei em mim, porque antão senti-me mais refinada no amor; dali passa o senhor comigo a outra morada mais remontada e, em estes boos, pareciam as asas que levam fogo, porque eu via-me toda abrasar-me.” 

Trata-se de uma experiência mística ou da descoberta dos orgamos múltiplos na literatura portuguesa? E quem escreveu? Uma falsa ingénua? Vanda Anastácio: “Não sei se é uma paródia. Encontrei isso na Torre do Tombo, arquivado como ‘experiências místicas de uma freira’, de quem nada sabemos. A letra é a de uma pessoa com a primeira classe, sem treino de escrita, numa folha de papel escrita dos dois lados. Fiquei muito contente porque quase não temos textos assim. São raros os que aparecem tal como foram escritos, e não integrados no discurso de um confessor que depois os manipula e edita.” 

Os relatos místicos têm códigos de linguagem e um estilo próprios: “Tive uma aluna que queria fazer uma tese só sobre esse discurso. Algumas das imagens que elas descrevem são inspiradas em visões que leram de outras freiras. Todo esse universo é muito estranho para nós. A mim parece-me autêntica ficção científica.”

Com o seu modelo discursivo inspirado e autorizado pela canonização de Teresa d’Ávila, o relato místico é também um jogo entre freiras e confessores: “Abre a porta às senhoras que estão nos conventos. Escrever torna-se legítimo e santificante. Os próprios confessores começam a pedir às confessadas que escrevam as suas experiências visionárias. É uma maneira de elas obterem privilégios dentro do convento. E para o confessor é importante aparecer como fazedor de santas.”

Um cavalo de Tróia

Através da escrita feminina ganhamos acesso à vida das mulheres. Muitas vezes, quase sempre, acedemos aos seus constrangimentos. No caso da vida de corte, a passagem para o Renascimento cria uma contradição: as mulheres têm acesso à instrução, mas a sua cultura não tem expressão prática. Vida pública e poder político são manifestações de acesso exclusivo aos homens. Mesmo quando integram famílias influentes, as mulheres não têm qualquer papel no teatro da vida pública. “Até ao final da Idade Média, a classe a que uma mulher pertencia era mais determinante do que o género. Gradualmente, entre os séculos XVI e XVIII, o género passou a ser uma categoria com um peso muito grande.”

Quando o sistema é perverso, convida à perversidade. É o que se nota nas dedicatórias: “Dizem-nos muito sobre a maneira como se apresentam. São raras as que se apresentam como autoras, dizem que não têm capacidades, mas mesmo assim escrevem…” A falsa modéstia não é um exclusivo feminino, mas as mulheres chegam “a fazer de conta que não foram elas que escreveram”. O seu cavalo de Tróia foram as traduções, entendidas como um serviço, uma maneira de ocupar o tempo livre. Mas, nas entrelinhas, as autoras encontram a livre expressão das suas ideias. É o caso de Públia Hortênsia de Castro, que usa uma encomenda para traduzir os versos do Saltério até chegar a uma versão muito pessoal. “O que ela realmente faz não é nada do que lhe pediram para fazer.” Toda a sua argumentação visa explicar os motivos que a levaram a fazer os cortes e os acrescentos que transformaram quase totalmente a obra. “Se a retórica é submissa, a acção é revolucionária.” De Públia Hortênsia, explica Vanda Anastácio, sabemos “pouquíssimo”. “Mas temos relatos contemporâneos que contam que ela frequentou a universidade vestida de homem juntamente com o irmão. Claro que isto só foi possível porque era familiar do Inquisidor de Évora.” 

A propósito da tradução da Crónica Geral de Marco Antonio Sabelico, D. Leonor de Noronha, filha do Marquês de Vila Real, começa por dizer na dedicatória à rainha D. Catarina que a sua intenção foi “tresladá-la à letra”. Mais à frente explica que onde o autor foi “curto” ela “acrescentou”. “Com o pretexto da tradução escreveu outro livro”, resume Vanda Anastácio.

Mas Uma Antologia Improvável não é bem uma recolha de escritoras portuguesas até ao início do século XIX. Essa foi a ideia original, de Teresa Sousa de Almeida. Vanda Anastácio optou por um roteiro “para entender a escrita das mulheres”, que funcionasse como um manual sobre os modos de actuar num meio que lhes está formalmente vedado (o primeiro capítulo do livro inclui discursos masculinos sobre a condição feminina; o segundo, dedicado a polémicas e querelas, apresenta trocas de opiniões entre homens e mulheres sobre o papel da mulher).

Sob disfarce

Num contexto tão restritivo, a vida conventual tanto representa uma prisão como uma libertação. “Os conventos eram lugares onde elas podiam ler”, ainda que “as leituras [estivessem] muito condicionadas por vidas de santos, obras de edificação e orações”. A literatura conventual foi um dos berços da literatura feminina (Isabel Mourejão, autora de um bibliografia dedicada ao tema, foi crucial na identificação de muitos textos), mas o convento não era propriamente um espaço privilegiado para o ensino das mulheres. Uma das maiores surpresas das investigadoras do projecto foi perceber que boa parte das autoras não sabia latim: “Quem não aprendia antes de ir para o convento também não era lá dentro que o aprendia.”

A ambiguidade da vida conventual, tão libertadora quanto concentracionária, gerou Joana da Gama: “Não teve uma educação formal muito elevada; sabia ler e escrever e era autodidacta.” Acima de tudo era rica. “Ficou viúva muito nova e no século XVI não há lugar para mulheres solteiras ou viúvas. A palavra solteira usa-se para as prostitutas. Não sendo possível a uma mulher viver sem tutela masculina, que faz ela?” Vai para um convento, sim, mas onde encontrar um convento com regras da sua conveniência? “Como herdou imenso dinheiro, fundou o Recolhimento da Esperança, em Évora”, onde publicou Ditos da Freira, um livro de máximas. “Teve duas edições pagas por si, em que escreve sobre o que é ser mulher e viver naquela sociedade. As mulheres viviam do crédito e aquelas máximas são críticas aos abusos de autoridade, à maneira como as mulheres eram tratadas.”

Elas disfarçam-se de homens para entrar na universidade, elas disfarçam-se de freiras para escrever sobre a moralidade dos costumes. Elas até se disfarçam de mães para discutir ética militar. É o caso da Condessa de Assumar, que numa carta ao filho o instrui sobre como comportar-se em campanha de guerra. A carta é de facto dirigida ao filho, mas até que ponto pode considerar-se um documento familiar? “Em todas as bibliotecas de Lisboa, Évora e Coimbra, e em espólios de famílias nobres, aparecem cópias desta carta.” 

Usando o mesmo dispositivo, o de uma carta ao filho, a Marquesa de Távora relata a sua viagem à Índia, o que lhe permite fazer uma crítica de todo o sistema colonial, desde a exploração agrícola à administração do território. Uma vez mais, trata-se de um documento que nunca foi impresso, mas de que existem várias cópias manuscritas: “Aquilo circulou”, sublinha Vanda Anastácio. “São falsas cartas privadas que foram lidas como textos de interesse geral. De outro modo não tinham sido feitas tantas cópias, tinham ficado só com os filhos.”

Com o advento da narrativa romanesca, o disfarce torna-se um tema. Em Henriqueta de Orléans ou o Heroísmo, uma jovem em “desassossego” maldiz “a sorte que [a] fizera nascer mulher” “Não podia acomodar-me a estar um dia todo presa na almofada, e culpava com exasperação este vão respeito, este pundomor, que põe-as em tanta prisão.” Francisca Possolo da Costa traveste a sua heroína de homem para que ambas, autora e personagem, possam realizar tudo o que não lhes é permitido enquanto mulheres.

Vanda Anastácio descobriu Francisca Possolo da Costa porque, embora 33 anos mais nova, ela trocou poemas com a Marquesa de Alorna. “São poemas de elogio mútuo. Quem fez a sua biografia foi António Feliciano de Castilho, que era amigo do marido, mas branqueia muito o que diz sobre ela. Diz que ela não tinha opiniões políticas. Ora no seu espólio encontramos peças de teatro e poemas em defesa de D. Pedro que recitou no Teatro São Carlos quando foi aclamada a Carta Constitucional; era casada com Ângelo Baptista da Costa, que tinha sido oficial de marinha e depois entrou em negócios com o pai dela; não tinha dificuldades financeiras; ele é um dos financiadores do Partido Liberal; ela tinha em casa um teatro particular, onde fazia representar peças que traduzia ou adaptava do francês.”

Mais do que uma escritora, Francisca Possolo da Costa moldou a vida intelectual lisboeta oitocentista: “A sua casa era frequentada pela Marquesa de Alorna, por António Feliciano Castilho, José Maria da Costa e Silva (que escreveu o Ensaio Biográphico-Crítico sobre os Melhores Poetas Portuguezes, obra em dez volumes que é a primeira grande história da literatura portuguesa).”

Corações a arder

As memórias escritas na prisão (isto é, no convento) de Mariana Bernarda de Távora, 11.ª Condessa de Atouguia e irmã da Marquesa de Alorna, têm o seu quê de trágico, mas também de pícaro. Ela cruza história e superstição, conspiração política e vida familiar. Fiquemo-nos pela parte divertida, a de uma aristocrata viciada no jogo e nas regalias mundanas de uma vida luxuosa, a quem o terramoto veio roubar tudo o que tinha de riquezas materiais, apenas lhe deixando intacta a família. Sem tecto e em alguns casos sem roupa, a Condessa interpreta a desgraça material como um convite de Deus ao retiro espiritual — retiro a que de resto foi obrigada quando os homens da sua família foram acusados de participar no atentado contra o rei D. José I. Vanda Anastácio chama a atenção para o diálogo “arrepiante” que teve com o marido, o Conde de Atouguia, despedindo-se da sua condição de esposa: “Ó Conde, ora eu já lhe dei cinco filhos para a sucessão de sua casa (…) vai sendo tempo de eu perder a beleza e de você ficar sofrendo o jugo de uma mulher velha; você dava-se-lhe que eu fosse para um convento?”

Uma Antologia Improvável é uma janela que se abre sobre as 1001 mulheres que escreveram sobre as 1001 noites da condição feminina portuguesa. Como a carta de D. Filipa de Noronha ao seu amante, o rei D. João V: “Para todos o agrado de Vossa Majestade serve de exaltação, só para mim de precipício!” Ou a carta de D. Catarina de Aústria à filha, Infanta D. Maria: “Muito vos peço que vos não lembrem ciúmes; porque vos não servirão senão de dar descontentamento ao Príncipe vosso marido, e a vós.” Ou a carta de Soror Maria do Céu a um pretendente: “Calar com ciúmes, é acertado, que isso deve fazer um amante; não de paciente, mas de advertido. Os ciúmes são desconfianças, as desconfianças são fraquezas da fé; as fraquezas da fé, faltas em um amante. Logo porque não há de calar um amante a sua falta? Arder um coração muito, e buscar remédio pouco já o experimentou quem disse: ‘Arded coraçon arded.’

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