DeLillo ainda se inquieta com aquela manhã de Dallas

O escritor norte-americano esteve em Lisboa para apresentar a edição portuguesa de Libra, na qual aborda o homicídio do ex-Presidente Kennedy do lado de trás da mira.

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Don DeLillo a ler durante a sessão no Nimas LEFFEST
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Durante os três anos que demorou a escrever Libra, a biografia ficcionada de Lee Harvey Oswald, Don DeLillo teve uma fotografia do assassino de John F. Kennedy a segurar numa espingarda em cima da secretária – a mesma que figura na capa da primeira edição norte-americana, de 1988. Quando terminou o romance, a moldura caiu ao chão, naquilo que o autor descreveu como uma “anti-epifania”.

Na conversa que teve esta terça-feira em Lisboa, DeLillo não revelou se acredita ou não se Oswald terá sido mesmo o autor do disparo mortal, se terá havido um segundo (ou terceiro) assassino ou qual é a sua conspiração favorita. Ficou-se pela imaginação.

Em Lisboa para integrar o júri do Lisbon & Estoril Film Festival, DeLillo aproveitou para apresentar a edição portuguesa de Libra (Sextante Editora), quando se assinalam 50 anos daquela manhã de 22 de Novembro em Dallas, em que “tudo pareceu parar”. Foi um homem reservado, de expressão iminentemente séria (“só sorrio quando estou sozinho”, chegou a dizer ao New York Times), como é habitualmente definido, que subiu ao palco do Cinema Nimas e leu passagens de Submundo (1997, Sextante Editora) enquanto, na tela, corriam as infames imagens capturadas pela câmara Bell&Howell de Abraham Zapruder.

Os fotogramas sucedem-se, voltando atrás, repetindo, ampliando, sempre sem som, como que a acentuar a crueza do cenário. Ao mesmo tempo, DeLillo lia pausadamente a passagem em que duas personagens se encontram para assistir a uma projecção ilegal do filme de Zapruder, num armazém de Nova Iorque nos anos 1970. Quando termina a leitura, o filme ainda corre por alguns minutos, agora sim, num silêncio sepulcral. DeLillo fica a olhar para as imagens, “tão perfeitas a ser aquilo que são”, esmagado pela grandeza que a tela lhes confere.

No dia do homicídio de Kennedy, DeLillo tinha acabado de fazer 27 anos – nasceu a 20 de Novembro – e soube de imediato que “algo sério e importante acabara”. “De repente tínhamos um presidente fotogénico e popular e em segundos estava morto”, contou, durante a conversa que teve com o seu tradutor Paulo Faria (autor da entrevista ao suplemento Ípsilon que será publicada nesta sexta-feira), depois da exibição do filme de Zapruder. Aqueles segundos, frios e cruéis como bem mostram os fotogramas, lançaram “uma nuvem de paranóia sobre o país”. DeLillo relembra que dias depois da morte de Kennedy teve de apanhar um avião. Quando já se encontrava no aparelho, começou a sair fumo do motor, ao que o piloto bradou sem hesitar: “Este avião não vai para lado nenhum hoje!”. “Parecia estar em todo o lado”, observou DeLillo.

Ainda longe de iniciar a sua carreira literária, DeLillo consegue reconhecer a importância que a morte de Kennedy teve para a sua obra, apesar de só dali a 25 anos vir a escrever Libra. “Não acho que os meus livros pudessem ter sido escritos no mundo que existia antes do assassinato de Kennedy”, revelou em 1991 numa entrevista ao New York Times. “E penso que alguma da escuridão do meu trabalho é um resultado directo da confusão e do caos psíquico e do sentimento de aleatoriedade que se seguiram àquele momento em Dallas. É possível que tudo isto tenha feito de mim o escritor que sou, para melhor ou para pior”.

Libra– título inspirado no signo astrológico de Oswald – começou a ganhar forma na cabeça de DeLillo quando descobriu que Lee Harvey Oswald chegou a morar a alguns quarteirões da sua própria casa, no Bronx, durante alguns anos. “Pensei se não o teria já visto alguma vez”, conta. Estabeleceu-se então uma estranha empatia entre o escritor e a personagem ficcionada. Interessou-lhe sobretudo a vida daquele homem peculiar e o caminho que o levou ao Depósito de Livros Escolares do Texas no dia da visita do Presidente.

DeLillo insiste que o livro é ficção e que não pretende apresentar factos ou responder às grandes questões levantadas pelas várias teorias da conspiração. É óbvio que o autor teve de se munir de material factual para a construção da vida de Oswald. Esteve várias vezes em Dallas, fez o percurso entre Dealey Plaza e o local de onde o assassino terá disparado e consultou o relatório da Comissão Warren, encarregada de investigar o homicídio. Mas é com uma desarmante honestidade que admite a sua ignorância sobre o assunto: “O Paulo [Faria] sabe mais do assassinato do que eu!”.

No fundo, DeLillo é mais um entre os milhões de americanos para quem a explicação oficial – a de que Lee Harvey Oswald foi o lonely gunman, o assassino solitário, que matou o presidente Kennedy – não é suficiente. A forma que encontrou para expressar a sua inquietação foi aquela que melhor conhece e que revela na primeira frase da “Nota de Autor”, presente no final da edição norte-americana de Libra: “Este é um trabalho da imaginação”.
 
 
 

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