Maria é loira, de olhos verdes e filha de ciganos búlgaros pobres. E agora?

Ficou provado que houve um crime. Mas o "caso do anjo loiro" também provou os preconceitos da Europa, diz o sociólogo Pedro Góis.

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Maria AFP
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A família biológoica da criança Reuters
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Os "pais" adoptivos Reuters

Maria, a menina encontrada num acampamento cigano na Grécia, não é uma criança desaparecida ou raptada. É filha biológica do casal de ciganos búlgaros Sacha e Atanas Rusev. Os testes de ADN provaram-no. E agora?

Agora, acabou o sonho. Os media gregos chamaram-lhe “anjo loiro” e os meios de comunicação da Europa reproduziram a frase. Porque a criança é loira e tem os olhos verdes, todos quiseram acreditar num “milagre” — os jornais britânicos até disseram que a descoberta de Maria dava esperança a todos os pais de crianças desaparecidas. Se o “anjo loiro” foi encontrado, Maddie McCann também poderia ser.

Os media e o seu público sofreram com a sorte da criança, obrigada a mendigar na rua. Sabe-se agora que a família biológica é ainda mais pobre do que a grega e vive não num acampamento mas num gueto — se na Grécia os ciganos são discriminados, na Bulgária são perseguidos. E agora?

Agora, explica o sociólogo Pedro Góis, que se especializou em imigração (e minorias) em Portugal e na Europa, vamos perceber como se construiu uma série de ilusões apenas porque o caso nasceu de um preconceito.

“Chamaram-lhe anjo loiro... andamos todos, na Europa, à espera de uma espécie de milagre, de uma história feliz, que nos redima neste período em que vivemos, mas não é assim”, diz Pedro Góis, que é professor na Universidade do Porto e investigador na de Coimbra.

Maria foi vista por um polícia que, durante uma rusga ao acampamento grego, achou que uma menina tão loira não podia ser cigana. “Creio que a primeira notícia foi muito amplificada porque se usou essa categoria, cigano, que acabou por marcar toda a história”, diz o sociólogo. À identificação étnica da família com quem a criança vivia seguiram-se outras notícias que ligaram ciganos a roubo ou compra de crianças. Histórias assim contadas, diz o sociólogo, adensam a exclusão das minorias que vivem no espaço europeu.

“Todos os paises envolvidos nesta história são da União Eurpeia. E o caso revela que a Europa não está conciliada com a sua própria realidade.  A Europa é diversa, tem todos os tipos de pele e a maioria dos grupos étnicos do mundo, mas percebemos que a realidade sociológica avançou mas que os nossos estereótipos não se adequam à realidade”, diz o sociólogo.

Nesse desfasamento, o preconceito ganha e o bom senso perde, como se viu na Irlanda do Norte, onde outra menina loira foi retirada à família cigana com quem vivia, para se provar com ADN que era filha daqueles pais.

Por entre a teia de preconceitos, provou-se que houve um crime, que será julgado. A “família” de Maria foi acusada de tráfico de menores (registaram-na ilegalmente como sua filha), a família biológica poderá ser acusado de abandono e de tráfico se fi car provado que a vendeu por €250.

A criança está a viver numa associação de apoio à criança.

Filhos-fantasmas
Porém, para Pedro Góis, o que é realmente importante foi ter-se destapado uma realidade que já se sabia que existia: o tráfico de crianças está cada vez mais activo na Grécia e na Bulgária.

A investigação revelou outros casos (dois esta semana) e esquemas — a mãe “adoptiva” registou o nascimento de seis filhos em dez meses e, diz a AFP, obtém cerca de 2700 euros de abonos de família. Filhos fantasmas estão a nascer em toda a Grécia, não apenas nas famílias pobres de minorias, mas nas famílias dos novos excluídos.

“A Grécia está particularmente vulnerável a estes casos. Tem um conjunto de campos de refugiados económicos onde se vive de forma inumana. Os bairros de gente muito pobre crescem de dia para dia — são pessoas que estavam protegidas pela Segurança Social e que agora estão totalmente excluídos e à mercê da exploração e do abandono”, diz Pedro Góis.

Para se saber isto, diz o sociólogo, não era preciso dizer-se que Maria vivia com uma família cigana: “Há na Europa um antagonismo contra os grupos de ciganos, que impede que olhemos para eles como seres humanos iguais a nós. E casos como este, amplificados desta forma pelos media, podem servir de acelerador para os movimentos de extrema-direita pegarem no lado negativo desta exclusão e criarem bodes expiatórios, como já aconteceu no passado.”

A história de Maria, que tentámos transformar no conto de fadas, não teve o fim feliz que a Europa esperava. Mas pode ser positiva, diz o sociólogo. Em primeiro lugar, para Maria. “Pode haver a possibilidade de ser incluída socialmente, com as mesmas oportunidades dos outros. A sociedade europeia é isso mesmo, é a construção da igualdade de oportunidades, e esta história pode alertar de que há outras crianças ao nosso lado que não podem ficar excluídas — se demorarmos dez anos a dar por elas, será mais difícil, se demorarmos 20, serão adultas com uma vida de exploração e mendicidade.”

Maria, afinal, não era "Maddie". Mas Pedro Góis deseja que tenha na União Europeia um efeito idêntico ao que a inglesa desaparecida na Praia da Luz teve em Portugal: “Tornarnos mais atentos ao que se passa à nossa volta”.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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