Síndrome anti-emigrante

O português padrão não tolera que alguém se dê bem na vida. Pior, não aceita que um tipo normal decida ser dono do seu destino e assumir os riscos das decisões que toma

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Reuters

Nota prévia: este texto não é simpático

Existe num certo Portugal uma antipatia emigrante. Descobri com estas crónicas no P3 que há quem olhe para aqueles que vivem fora como se de gentalha da pior espécie se tratasse.


O “salto” sempre foi mal visto por um país que é, muitas vezes, feito de invejas. Há-de ser por isso, e não pelo seu contrário mais óbvio, que as porteiras e os pedreiros em França merecem tanta vergonha alheia. Terá sido aliás pelo esnobismo nacional que a crítica intelectual arrasou com o filme de Ruben Alves.

Num comentário nas redes sociais ao meu último texto alguém escreveu qualquer coisa do género: “Tu foste para fora e ainda te queixas? Então e eu que fiquei aqui?”. O tom era ligeiramente diferente, mas esta é uma casa de respeito.

  

O emigrante nunca foi bem visto. O problema tem, contudo, contornos mais profundos. O sistema nervoso lusitano é particularmente avesso ao sucesso e à felicidade, até. É de bom-tom cultivar-se um certo fastio pela vida. Cai bem que se mantenha um quase permanente ar de mágoa. Fazemos (e observem o uso da primeira pessoa do plural) o culto da desgraça, preferimos a tristeza: nossa e, especialmente, dos outros. O português padrão não tolera que alguém se dê bem na vida. Pior, não aceita que um tipo normal decida ser dono do seu destino e assumir os riscos das decisões que toma.


A emigração tem a ela associada histórias de diferentes enredos. Há verdadeiros dramas familiares e pessoais. Marido, mulher e filhos separados. Gente de coragem que se sacrifica (ainda mais) para garantir o presente (até mais do que o futuro) daqueles que ama e de si próprio, numa verdadeira luta pela sobrevivência. Há também os outros, aqueles que simplesmente quiseram ou puderam virar a página e que o fizeram só porque são dotados de livre arbítrio.

Ficar, nos dias que correm, talvez seja a maior das ousadias, só comparável à de voltar. Não vos vou falar da vida que levo. É desnecessário, aborrecido e, bem vistas as coisas, não nos conhecemos assim tão bem. Mas emigrar, mesmo que por livre vontade, não é fácil (e se não experimentaram não sabem do que falam). Não sabem o que é estar longe, sem uma auto-estrada que nos leve de volta. Não fazem ideia o que é chegar a um país que nos é estranho sem conhecer ninguém. Não imaginam o que é precisar das nossas gentes e só as ter pelo Skype. O que é estar sozinho numa casa vazia. O sentir no peito uma saudade que só sabíamos de nos contarem. Portugal corre o risco de estar a criar, novamente, dois países: o de lá e o de cá. E isso, então, não nos levará a lado nenhum. Todos nós — e da equação não excluo sequer aqueles que acham que falo de barriga cheia — vivemos uma jornada estranha em que amanhã já é demasiado distante para se saber ao certo. Estar vivo e ser português é, nestes tempos, um acto de grande coragem.

Chamem-me o que quiserem, mas não nos censurem por tentarmos fazer a nossa parte. E não se preocupem, estamos só a cuidar das nossas vidas.

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