Exercício de delírio

Não é preciso lente teórica alguma para analisar relações de poder tão "benéficas" e de boa-fé, como aquelas que Portugal recebe. Diz a professora; vão consultando na internet as novidades das instituições europeias, é importante

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Charles Platiau/Reuters

Geniozinho, coitadinho do menino. É incompreendido. São os pais, o mundo, os professores. Leu tudinho e até sabe filosofar, discursar, escrever, e gritar contra o capitalismo, enquanto fala de cultura como gente grande. É claro. Fala-se e grita-se, porque o pão aparece inteiro em cima da mesa (metáfora recorrente da literatura, vejamos).


Toma lá um poema de Álvaro de Campos para esqueceres as violações em plenas manifestações no Oriente, enfia aí esse Joseph Walser do Gonçalo como metáfora ao sem-abrigo na rua da frente (rouba-lhe o cinto se tiver morto), deitado em crucifixo à espera da resposta Hobbesiana que vai satirizar a estupidez do desgraçado, e já agora, teoriza um pouco sobre o som de Bach, esperando que chegue algum tom aos ouvidos dos bolsos nulos, do colega que infelizmente não tem uns pais abastados, mas empenhados em manter o filho nas órbitas do conhecimento.

Estuda história das relações internacionais, e faz o paralelismo às mortes executadas por partidos extremistas contemporaneamente emergentes. Assobia com lábios ligeiros de Kant, enquanto atribuem à RTP funções de mera representação económica e financeira, deixando de parte, a informação, comunicação, o povo, o geral, as vontades. É a era do "multitasking".


Somos uns "Capitães da Areia", sem praia alguma, onde só deixam pegada os que sabem saltitar, mas não pisar de frente. Os empresários nos intervalos das reuniões asiáticas que decorrem à porta fechada, mostram-se tristes para adeuses colectivos de mais 100, mas não se esquecem das 10 maravilhas mecânicas que estão para vir, importadas.


Não é preciso lente teórica alguma para analisar relações de poder tão "benéficas" e de boa-fé, como aquelas que Portugal recebe. Todos bem comportados agora como há trinta anos. Diz a professora; vão consultando na internet as novidades das instituições europeias, é importante. E as consequências ou novidades políticas germinadas nas eleições no país que nós sabemos. O que manda. Esquece lá as autárquicas! Já passaram uns dias desde o acontecimento à escrita e ainda mais à leitura. Que estupidez, por amor de deus, há coisas mais importantes a acontecer, não te distraias.

Uns queixam-se, porque têm que ver da janela os tais geniozinhos a esbanjar dinheiro eloquente em plena boémia, enquanto rezam para estudar, mas esses não se podem queixar, porque há quem não estude, e esses também não, porque há quem passe efectivamente fome, e esses também não porque estão vivos e, e, e, Estado Social para aqui, défice democrático para acolá, a Europa e seu fracasso, Síria para o meio, refugiados, náufragos, imperialismo estadunidense para apimentar, mas e o amigo que desistiu já do futuro, e os pais desempregados, e a irmã que já não vai aprender inglês tão cedo, e a vida, morte, desgraça de milhares. É tudo relativo; lê um pouco de Maquiavel, intercala com doses Keynes, mais um filósofo-intelectual-economista-escritor, não interessa. Passa o tempo. Tens que compreender o que te rodeia, e se não o conseguires, deita-te no alcatrão e olha para as estrelas, pensando em Galileu, imaginando Van Gogh. É tudo relativo. Tudo está em construção. Ainda és muito novo, há tanta coisa que ainda não sabes caro leitor. Tal como eu. Justo será se me disseres: a porra é que sou! Porque se esta crónica se escreveu a si mesma neste tom de fluxo desordeiro, foi porque surgiu num dia em que se ouviu muita coisa, demasiada, onde nenhum livro, nenhum discurso, nenhum arrogante boémio ou mesmo nenhum presidente de qualquer associativismo, governo ou entidade pode consertar. O pão falta na mesa, estudantes desistem, vidas acabam, nada de fulcral muda, porque ou não interessa ser mudado, ou porque não há justiça. Social, material, política, ética, institucional, o que lhe quisermos atribuir. Poética.

Podes sempre ir ver o Benfica. Em três ou quatro desportos diferentes. "Ainda não é o Fim nem o Princípio do Mundo. Calma é Apenas um Pouco Tarde".

E se um exercício de delírio (executado de um só lance) de um agente racional (?) com menos de duas décadas dá neste emaranhado, não quero imaginar como acordam os meus pais. Os vossos pais. Os pais dessas ruas.

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