Fábrica de sonhos

David Cage tem tentado aproveitar ao máximo a evolução da tecnologia para nos entregar a sua visão à capacidade máxima.“Beyond: Two Souls” é o último passo nessa odisseia

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David Cage é um criador de universos para nós carregarmos em botões. Mas no caso da maioria dos jogos da sua Quantic Dream a ideia de pressionar botões é só essa: pressionar botões. Para quem joga regularmente, jogos como “Fahrenheit”, “Heavy Rain” e agora este “Beyond: Two Souls” (“Beyond: Duas Almas” na versão portuguesa) oferecem universos onde sentimos que não assumimos uma ideia tipificada de controle, o comando não é um volante, mas uma espécie de decifrador que nos permite, com pouco mais de uma dúzia de botões, viver um mundo, uma história, como se fôssemos o protagonista de um filme em vez de uma personagem num videojogo.

Desde a sua fundação, em 1997, a Quantic Dream criou quatro jogos. “Omikron: The Nomad Soul” (1999) foi o primeiro, mas só a partir de “Fahrenheit” (também conhecido como “Indigo Prophecy”) em 2005 é que David Cage começou a desenhar o seu mundo de narrativas interactivas no mundo dos videojogos (curiosidade: um ano antes estreava “Immortal”, filme de Enki Bilal na qual a Quantic Dream esteve muito envolvida). “Fahrenheit” não tinha a opção de “new game” mas sim de “new movie” e a aventura começava com um tutorial apresentado pelo próprio David Cage.

Heavy Rain” e agora este “Beyond: Two Souls” (ambos exclusivos da Playstation 3) são processos de evolução do que começou em “Fahrenheit”. Videojogos que não são videojogos, onde o modo de jogar não é convencional, mas uma forma de interargimos com uma história e, de certa forma, mudá-la conforme as nossas escolhas. Pouco disto é realmente novidade, o que é novo é a forma obsessiva com que Cage quer conjugar os universos que cria com uma outra dimensão, diferente da convencionada pelos videojogos e pelo cinema. Contudo, a ideia não é fazer um filme interactivo, mas sim potenciar ao máximo a ideia de uma narrativa interactiva, de nos fazer entrar noutro mundo, sem que estejamos simplesmente a assistir. Isso é diferente de um jogo e é mais do que um filme.

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Em “Beyond: Two Souls” a ambição foi mais além. Contratou Ellen Page e Willem Dafoe para serem capturados e integrados como personagens no jogo. O resultado, visualmente, é admirável e a prestação de Ellen Page mostra que o jogo é definitivamente um passo em frente na ambição de Cage. É ela que controlamos, como Jodie, ao longo de quinze anos da sua vida, num registo contínuo entre passado e presente. Jodie é também Aiden, uma entidade sobrenatural que apenas comunica com Jodie. É uma espécie de anjo da guarda, que permite algumas funcionalidades interessantes a nível de jogabilidade.

Com o comando na mão limitamo-nos a seguir as indicações que o ecrã nos fornece. Às vezes dá-nos oportunidade de escolha. Não há ecrã de “Game Over” e isso, por vezes, dá a ideia que não controlamos assim tanto a narrativa. Também há buracos no argumento, tal como acontecia em “Heavy Rain”, mas também é fácil ignorarmos isso para absorvermos a experiência possível que Cage nos quer oferecer. Não deixa de ser menos fantástica por causa disso.

“Beyond: Two Souls” é um videojogo na fronteira para um estado que ainda não se sabe definir. Não é o futuro, é uma coisa à margem, uma alternativa à convenção do presente. É possível que David Cage fique sempre a metros do cume da montanha, mas as suas tentativas são coordenadas óptimas de uma dimensão do entretenimento que precisa de ser explorada.

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