Por uma cultura de protecção a crianças e jovens

Foi conhecido há dias o Relatório da Actividade das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Risco relativo ao primeiro semestre deste ano. Umas notas breves sobre alguns dos dados nele contidos.

Aumentou o número de processos novos relativamente ao 1.º semestre do ano passado sendo muito significativo o aumento de situações relativas ao direito à educação, cerca de 22% do total. No entanto, a exposição a comportamentos que ameaçam o bem-estar da criança, violência doméstica por exemplo, continua a ser a situação mais frequente.

O risco no cumprimento do direito à educação envolve situações de absentismo e abandono escolar que serão potenciadas com o alargamento da escolaridade obrigatória para os 12 anos. Aliás, já em 2012 se verificou um aumento deste tipo de situações. No período em análise, o primeiro semestre deste ano, aumentou significativamente o número de casos reportados pelas escolas, 5480 que correspondem a 31,6% dos novos casos sinalizados.

Verificou-se ainda o aumento do número de situações de consumo de álcool e de droga, bem como de casos de indisciplina severa.

Em termos positivos merece registo a diminuição de casos envolvendo negligência, abuso sexual, maus tratos psicológicos, abandono, mendicidade e trabalho infantil.

No entanto, em termos globais, como bem refere o juiz Armando Leandro, presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco, importa considerar que "nem todos os casos chegam às Comissões de Protecção".

Embora não possa ser estabelecida de forma ligeira nenhuma relação de causa efeito, as dificuldades severas que muitas famílias atravessam e a insuficiência de apoios sociais não serão alheias a muitas das situações de risco em que crianças e jovens estão envolvidas. Aliás, os estudos mostram que crianças e velhos constituem justamente os grupos mais vulneráveis em situações de crise.

De há muito, e a propósito de várias questões, afirmo que em Portugal, apesar de existirem múltiplos dispositivos de apoio e protecção às crianças e jovens bem como legislação no mesmo sentido, sempre assente no incontornável “supremo interesse da criança", não existe o que me parece mais importante, uma cultura sólida de protecção das crianças e jovens. Como exemplos poderia citar a insuficiência de recursos e a falta de formação de alguns actores do sistema de justiça que intervêm nos processos dos Tribunais de Família.

Este problema poderá ajudar a explicar a enorme morosidade na tomada de decisão e na própria intervenção, bem como o surgimento, com alguma regularidade, de sentenças pouco compreensíveis em casos de regulação do poder parental com consequências negativas para todos os envolvidos. Pode ainda referir-se o silêncio das comunidades face a situações conhecidas de maus tratos ou negligência. Acresce a este cenário a dificuldade em promover com agilidade a articulação das múltiplas entidades envolvidas no universo respeitante a crianças e jovens, como também não é raro entre nós.

Por outro lado, as condições de funcionamento das Comissões de Protecção de Crianças e Jovens estão longe de ser as mais adequadas o que compromete naturalmente a eficácia do seu trabalho. Na sua grande maioria as Comissões têm responsabilidades sobre um número de situações de risco ou já em acompanhamento que transcende a sua capacidade de resposta. A parte mais operacional das Comissões, a designada Comissão restrita, tem muitos técnicos a tempo parcial. Tal dificuldade repercute-se, como é óbvio, na eficácia e qualidade do trabalho desenvolvido, independentemente do esforço e empenho dos profissionais que as integram, cujo trabalho deve ser salientado.

Este cenário permite que ocorram situações, por vezes com contornos dramáticos, envolvendo crianças e jovens que sendo conhecida a sua condição de vulnerabilidade não tinham, ou não tiveram, o apoio e os procedimentos necessários. Ainda acontece que depois de alguns episódios mais graves se oiça uma expressão que me deixa particularmente incomodado, a criança estava “sinalizada” ou “referenciada” mas tal não foi suficiente para desencadear a intervenção adequada e em tempo oportuno.

Em Portugal sinalizamos e referenciamos com relativa facilidade, a grande dificuldade é minimizar ou resolver os problemas referenciados ou sinalizados.

Por tudo isto, embora pareça verificar-se uma aparente menor tolerância das comunidades aos maus tratos aos miúdos, o que é positivo, também será fundamental que desenvolvam a sua intolerância face à ausência ou excessiva demora nas respostas.

Uma referência final para sublinhar a importância da prevenção que, certamente, minimizaria a ocorrência de situações que justificaram estas notas.

Professor universitário no ISPA - Instituto Universitário

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