Berlusconi rendeu-se e mostrou que já não tem na mão a direita italiana

Il Cavaliere anunciou à última hora voto de confiança no Governo que quatro dias antes quis derrubar. Moderados do PdL anunciam novo grupo parlamentar, mas Alfano ainda não terá decidido cisão.

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Letta discursa no Senado pedindo um voto favorável ao seu Governo Filippo Monteforte/AFP

À última hora, quando a aritmética se tornou inegável e a derrota iminente, Silvio Berlusconi rendeu-se. Percebendo que o partido lhe fugia, o antigo primeiro-ministro protagonizou a mais espectacular reviravolta dos últimos anos na política italiana e anunciou - do lugar no Senado que está prestes a perder - que apoiaria a moção de confiança ao Governo de Enrico Letta, que quatro dias antes tinha guilhotinado. Com a "pirueta", evitou que o seu Povo da Liberdade (PdL) se partisse já nesta quarta-feira aos olhos de todos. Poderá não ter sido o seu fim político, como alguns auguram, mas a derrota provou que, aos 77 anos, Il Cavaliere não é já senhor omnipotente da direita italiana.

Letta deu o mote ao abrir o discurso no Senado, a primeira das câmaras a debater a moção e aquela onde tudo se jogava - o Partido Democrático (centro-esquerda) não tem ali a maioria e a sobrevivência do Governo estava dependente de uma cisão no voto do PdL. "O dia de hoje será uma jornada de consequências históricas e, em certos aspectos, dramáticas para a nossa democracia", disse Letta, chamado em Abril a liderar uma inédita coligação entre o PD e o PdL depois do impasse criado pelas legislativas de Fevereiro.

Na intervenção, de quase uma hora, avisou que a queda do executivo colocaria Itália perante "um risco que pode ser fatal". Novas eleições, além de adiarem reformas urgentes, abririam um ciclo de ingovernabilidade e deixariam o país "sentado no banco dos réus da Europa".

Apesar do tom, nos corredores e mesmo no hemiciclo existia já a certeza de que o Governo iria sobreviver. Isto porque, pela primeira vez desde a sua entrada na política, Berlusconi não conseguiu manter as suas tropas unidas. Os cinco ministros do PdL - que depois da obediente demissão não calaram o desacordo com Berlusconi - resistiram a todas as tentativas de conciliação e arrastaram consigo a ala moderada do partido.

Uma dissensão que Berlusconi começou a levar a sério quando domingo Angelino Alfano, secretário-geral do PdL e vice-primeiro-ministro, ousou pela primeira vez criticá-lo. Seguiram-se três dias de reuniões, durante os quais o antigo primeiro-ministro chegou a dar a revolta por terminada. Mas na terça-feira à tarde, o delfim carimbava a revolta contra o mentor: "Estou firmemente convencido de que todo o nosso partido deve votar a confiança em Letta."

Os indefectíveis de Berlusconi chamaram-lhe "Brutus", o que apunhala pelas costas aquele que foi durante anos o seu César. Irónico, o jornal Il Fatto Quotidiano (esquerda) escrevia que Itália assistia incrédula a uma sequela de "Spartacus e a revolta dos escravos".

Conjura no Senado
Mas a conjura de Alfano foi tudo menos secreta. Pouco antes da votação, o vice-primeiro-ministro era fotografado pelas teleobjectivas a mostrar a Letta uma folha de papel com os números da revolta: dos 81 senadores do PdL, "25 votam a moção de confiança". Carlo Giovanardi, um dos conjurados, ia mais longe, dizendo aos jornalistas que os rebeldes eram já 40 "mas poderiam ser 50".

Os olhos viravam-se para Berlusconi, que só entrou na sala já Letta discursava há 20 minutos. De rosto fechado, por vezes escondido atrás das palmas das mãos, conversou com os aliados mais próximos, fez contas numa folha de papel, sem esconder o cansaço. Anunciou então que seria ele a falar em nome do PdL e, no meio de um total silêncio, declarou: "Decidimos, não sem um intenso debate, votar a moção de confiança."

Os queixos só não caíram - Letta ainda murmurou um irónico "é grande!" - porque vários analistas tinham avisado que uma reviravolta de última hora seria sempre possível. Berlusconi, que justificara o fim da experiência governativa com a recusa de Letta em adiar a subida do IVA, disse ter ficado convencido com as promessas de baixar os impostos sobre o trabalho e reformar a justiça. "Entrámos neste Governo com a esperança de que pudesse mudar o clima do país e contribuir para uma pacificação", declarou. "Ainda conservamos essa esperança."

Pouco depois, Letta via a sua moção aprovada por 235 votos a favor e 70 contra. Os jornais italianos foram unânimes na sentença: "Berlusconi rende-se", escreveram Corriere della Sera (Milão), La Stampa (Turim) e La Repubblica (Roma) nas suas edições online. A bolsa milanesa, que tinha já aberto em alta na expectativa da aprovação da moção, disparou.

"Temos agora uma maioria política coesa, ainda que numericamente diferente da que votou a moção", diria Letta, horas mais tarde, na Câmara dos Representantes.

James Waltson, professor da Universidade Americana de Roma, disse à AFP que não restava ao antigo primeiro-ministro outra forma de "conservar a sua posição de influência no seio do Governo e do seu partido". Pablo Ordaz, correspondente em Roma do El País, fala também numa "derrota envolta num vistoso embrulho de habilidade política" que permite a Il Cavaliere continuar a manobrar no xadrez da coligação.

Mas os analistas italianos, ainda que evitando declarar uma vez mais a morte política de Berlusconi, vêem nesta revolta algo que nunca tinham visto antes. O antigo primeiro-ministro "é uma sombra daquilo que foi", escreveu Stefano Folli nas páginas do económico Sole 24 Ore, enquanto Gianni Riotta sublinhava no La Stampa que, "pela primeira vez, ele encontrou alguém que lhe disse não" e manteve a aguentou o bluff mais tempo do que ele.

Cisão parlamentar
Concluída a votação, Roberto Formigoni, aliado de peso de Berlusconi durante anos, anunciava a criação de um novo grupo parlamentar dentro do PdL, juntando os que se opuseram a Berlusconi. "Somos já 25 na Câmara e 25 no Senado", dizia o senador, antes de acrescentar: "Não somos traidores, mas pioneiros que indicam a via a seguir pelo PdL."

Na quarta-feira, ao final do dia, não era, no entanto, garantido que os ministros rebeldes se juntassem à iniciativa e o próprio Alfano terá confidenciado aos seus aliados que "a fractura com Berlusconi era inevitável mas não é ainda irreparável", citava o La Reppublica, segundo o qual o vice-primeiro-ministro poderia encontrar-se durante a noite com o seu mentor.

Apesar de alinhado agora com Letta, Alfano sabe que deve toda a sua carreira política a Berlusconi e que não herdou dele o carisma. Sabe também que outras figuras antes dele, mais experientes, se distanciaram de Berlusconi para caírem rapidamente no esquecimento.

Os próximos dias serão decisivos para perceber os estragos da votação desta quarta-feira, a começar pela forma como Berlusconi vai reagir ao início do processo para a sua destituição no Senado. Mas se há um derrotado claro, há também um vencedor - Enrico Letta, um primeiro-ministro "com nervos de aço", nas palavras do jornal Le Monde, que terminou o dia dizendo aos deputados: "Itália não precisa de chantagens, do tipo "ou fazem isto ou cai o Governo", até porque mostrámos que o Governo não cai."

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