A Síria, onde tudo é lógico e nada faz sentido

John aceitou beber um café. Viveu dez anos em Damasco e quer recomeçar em Istambul. Estivemos três horas à conversa. John é fotógrafo mas não fotografou a revolução nem a guerra, sentiu que fazia parte, que era a vida dele. Tinha autorização de residência, casa, trabalho, uma galeria. No início do Verão saiu, há muito que ninguém ia à galeria e ele já não tinha dinheiro. Só quando decidiu sair é que descobriu que tinha o nome nos arquivos. “É aleatório, como não sabem bem quem pôr está lá toda a gente.” Saiu como quem vai de férias, nem sabe bem se não veio.

John sabe que Bashar al-Assad vai cair, não sabe quando. Quer pousar os pés aqui mas ainda não sabe como. Dez anos é muito tempo. Treze anos, o tempo que Bashar leva no poder, também. John conhece Damasco e o resto da Síria, o campo, o deserto, o Eufrates, Deir Ezzor. Na capital tinha muitos amigos que não conhecem o país e não percebem a revolta. Um dia, teve uma encomenda meio síria meio europeia que o levou a fotografar muitos lugares. “Essa fotografia nem pensar. O que é que estão a fazer aí esses ciganos?”, ouviu John do sírio responsável pelo projecto, a olhar para os camponeses de Deir Ezzor.

Na madrugada de 21 de Agosto, um ataque com gás sarin matou muitos sírios – 1400, mais de 400 crianças, segundo os Estados Unidos, muita, muita gente, seja qual for o ângulo por que se escolha ver. Um ataque com armas químicas, três dias depois dos inspectores da ONU terem chegado a Damasco, a 7 km do hotel onde estavam hospedados, desafiava a lógica. Mesmo para Bashar, que já tantas vezes desafiara a lógica. A lógica diz que o regime está por trás do ataque, mesmo se não há provas inatacáveis. A lógica diria que os rebeldes teriam mais a ganhar – Barack Obama traçara a “linha vermelha” e não havia maneira de a pisar mais pisada. Há rebeldes que o fariam se pudessem.

“Se o fizeram não foi apesar dos inspectores, mas por causa dos inspectores estarem ali”, disse John. Faz sentido. Quem pode faz, precisamente por poder.

A região atingida, Ghutta, resistia há ano e meio. Bashar, acreditámos distraídos, estava a ganhar. “Como é que se pode dizer que se está a ganhar quando se perdeu 60% do país? Quando não se consegue derrotar rebeldes com a ajuda dos russos, dos iranianos, do Hezbollah?” Bashar faz o que faz porque pode. Na véspera da primeira visita dos inspectores a Ghutta, uma semana depois dos ataques, sugeri na redacção que iam ser alvejados na viagem. Foram. Só porque sim. A lógica que desafia a lógica é a lógica com mais sentido que pode haver.

John conta que nos checkpoints em Damasco não se vêem soldados, só membros das Shabiha, a milícia de Bashar. “No início nem tinham uniforme. Agora têm mas nunca calçam botas, usam farda e sapatos ou ténis.” Os milicianos marcam presença, mandam parar, verificam identificações. Mas o que mais fazem é aceitar subornos e encher os bolsos. “Quando trocam de turno, é vê-los ir embora com sacos nas mãos”, o espólio do dia.

É por causa da corrupção que John sabe que o regime vai cair. “Surpreendeu-me a coesão. Esperava mais divisões, mais cedo.” Mas o regime está podre. Por isso tremeu e acabará por cair. Entretanto, mais sírios vão morrer, mais loucos vão aparecer e muitos vão avisar que a Al-Qaeda é a grande ameaça. Há coisas que John ignora. E não é de agora. Ignorou a blogger lésbica que escrevia de Damasco, logo em 2011. Ignorou a “jihad do sexo”, a notícia de que a Tunísia estaria a enviar mulheres para os rebeldes. Ignorou os relatos da freira de Maaloula, a vila síria onde se fala aramaico, que acusou os rebeldes de desmembrarem uma menina viva e de estarem por trás do sarin. John ignora tudo o que acaba por ser desmentido, parece. “A propósito, todos os meus amigos cristãos são anti-Bashar.”

O regime há-de cair. Entretanto, talvez a ONU tenha tempo para destruir as armas químicas. É tarefa para anos. Muitos sírios recusam acreditar que Bashar ainda lá esteja depois do último sarin. Mesmo sabendo que nunca contaram assim tanto, mesmo se a estrada de Damasco tinha como objectivo Teerão, mesmo se a “linha vermelha” era mais sobre Khamenei do que sobre Bashar. O acordo entre Washington e Moscovo estabelece uma “nova norma” contra o uso de armas químicas, dizem os EUA. Se o regime não cumprir “serão impostas medidas de acordo o Capítulo VII da Carta da ONU”, repetem, sabendo que se o regime não cumprir volta tudo para o Conselho de Segurança. Bashar continua a matar, só não com armas químicas.

John sabe que gostava de voltar a Damasco antes de já não haver sarin. Os sírios sabem que vai demorar até Bashar cair, perceberam a lógica muito antes de nós. Mas também sabem que nem a mais coerente das lógicas resiste a tudo para sempre.

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