Sabe-se lá quantos dias nos restam

Sou invejado por amigos por ter tido uma bisavó até aos meus 26 anos. Muitos deles nem sequer têm já avós e eu ainda mantenho quatro mais ou menos por perto

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enki22/Flickr

A perda de um ente querido (ou, pelo menos, próximo) dói-nos no âmago do nosso ser, não apenas pela presença irrecuperável de quem era e já não está, mas também por colocarmos em perspectiva o nosso próprio papel, aqui, a fazer sabe-se lá o quê. Antes de morrer, andamos atarantados. Antes de morrer, estamos todos perdidos. Por não sabermos as razões que nos levam a avançar meia dúzia de passos (leia-se, décadas) antes de chegar àquela esquina em que o eu de sempre se evapora.

Sou invejado por amigos por ter tido uma bisavó até aos meus 26 anos. Muitos deles nem sequer têm já avós e eu ainda mantenho quatro mais ou menos por perto. Sou, sem dúvida, afortunado por isto. Ao mesmo tempo, há o pânico de ainda ter de passar por tamanha perda – já para não falar em pais e amigos de todo o sempre. Saber que ainda há feridas por abrir no coração atormenta qualquer um.

A Maria da Conceição deixou a minha família há já umas semanas. Partiu, em forma de suspiro, sabe-se lá para onde – nem sequer temos pistas sobre ter chegado a lugar algum. Ainda se sente a dor a pairar dentro das nossas paredes. Há imagens que assomam, diariamente, no pensamento. O silêncio da capela fria, o rumor abafado das lágrimas contidas, o peso do caixão levado em ombros, os passos ritmados na calçada crua, o aroma da terra fresca que cai sobre a madeira.

O facto de não sabermos quando chegará a malograda hora alivia a ansiedade. Se alguém nos bate à porta sem o esperarmos, a azáfama de preparar um jantar à pressa dói menos que estar sentado, impávido mas inquieto, à espera de um "ding-dong" há muito anunciado. Ainda assim, magoa saber que a pessoa que conhecemos há mais tempo – nós mesmos – desaparecerá em breve.

A cultura popular representa a morte como uma figura magrérrima, esquelética. Se formos a ver bem, a morte deveria ser gorda – obesa, mesmo – tal a quantidade de almas que já sugou à Humanidade. O estupor. A morte é uma desavergonhada que nos rouba o sossego, que torna a existência num pavor criado pela ausência dos que queremos perto. Tira-nos o calor, aperta-nos o peito, assalta-nos o que conhecemos toda a vida para ficarmos abandonados, debaixo de uma ponte, só de cobertor em riste no meio da trovoada.

É esta a razão de andarmos desorientados, sem saber para onde ir, ocupados, metidos até ao pescoço dentro da nossa própria vida como avestruzes com medo de olhar lá mais para a frente, para o dia em que desapareceremos. Sejamos epicuristas. Aproveitemos, pois, quem está aqui ao lado, à distância de uma SMS ou de um abraço. Digamos um gosto de ti, antes que seja tarde.

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